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Barbárie GO

carlaozinho_0256_400x400Não era uma competição, eles apenas trataram de acelerar a bagaça toda de modo a terminar antes dos outros casais que transavam nas ruínas do velho Teatro de Arena. E havia um bom motivo para a pressa: os nanochips implantados nos hemisférios direitos dos cérebros dos dois alardeavam que havia adversários ao alcance. Os pobres últimos adversários…

Não dava para ignorar o sinal. Vestiram-se mal e rapidamente, fecharam os zíperes, ajustaram os Virtuais Glass nos rostos ainda exangues e partiram para a caçada. Afinal, não podiam desperdiçar a disponibilidade de vítimas em potencial, notadamente aquelas vítimas, sem dúvida os remanescentes da última gangue rival a ser destroçada, garantindo a eles e seus parças a hegemonia incontestável no jogo (ao menos na circunscrição da decadente cidade).

O pulsar dos nanochips ditado por GPS apontava inequivocamente para o boteco mais próximo, aquele que já fora famoso e bem frequentado um dia, porém agora se reduzira a um point eventual de moscas vadias e bebuns desavisados, desde que se tornara palco de frequentes e fulminantes AVCs causados por excessos nas batalhas mentais dos jogadores.

Crédito: Pedro Alves/creativecommons.org
Crédito: Pedro Alves/creativecommons.org

Os garçons se cansaram de remover cadáveres e de limpar poças de baba e sangue que empapavam as mesas e o chão.

O casal invadiu o recinto e a adrenalina secretada em seus neurônios, músculos e nervos praticamente os impediu de perceber que os parças da gangue também chegavam para o combate. Os Virtuais Glass detectaram imediatamente os alvos, pobres alvos.

Bastaria ajustar o programa cirurgicamente inserido para dizimar a última gangue que os separava da glória suprema.

Lógico que no calor da ação, ninguém se quedou a rememorar que o jogo que estavam jogando era um desdobramento radical de um game antigo free-to-play de realidade aumentada originalmente voltado para rodar nos hoje obsoletos smartphones. Fazendo uso do GPS e câmera de dispositivos compatíveis, o arcaico game permitia aos jogadores “capturar” e até “treinar” criaturas virtuais, “monstrinhos” originados num animê das antigas, que apareciam nas telas dos dispositivos como se estivessem no mundo real.

Lixo arqueológico, comparado à modalidade em curso, a Combat Gangs, pela qual os contendores podiam se enfrentar em batalhas mentais, fodendo-se caso os resíduos fossem um pouco de sangue e baba que impregnasse o ambiente real. Ao se inscrever numa gangue, os gamers tinham seus nanochips cadastrados de modo que além de identificar contentores, se resignavam a, ao serem alvejados virtualmente, — com os requintes de sangue & baba ou não no plano real — a “morrer” para o jogo. Perdiam o cadastro e o status na competição definitivamente, por assim dizer.

Crédito: Frankula/creativecommons.org
Crédito: Frankula/creativecommons.org

O casal já invadiu o boteco disparando rajadas de plasma virtual. Os parças ombreados intensificaram o tiroteio. Muitos dos adversários caíram fulminados — virtualmente, lógico; alguns até sucumbiram àqueles desagradáveis AVCs: e havia poucos garçons disponíveis para limpar a sujeira.

A vitória final estava no papo!

Só que de repente ela sentiu — virtualmente, é óbvio — uma dor excruciante em algum lugar do corpo — não interessa qual parte, afinal era tudo virtual, sabia apenas que o ataque fora pelas costas. “Morta” para o jogo, porém sem qualquer indício de AVC, se preocupou em localizar de onde viera a rajada fatal. Dele, exatamente dele!

Estupefatos pelo inesperado desdobramento, os parças relaxaram na fuzilaria e acabaram fulminados pelos rivais remanescentes. Aí sim, muita baba & sangue (pobres garçons laboriosos!)

Já que ainda viva no plano real, ela fulminou o parceiro com cara de “por quê?!”

Crédito: Salamanca/creativecommons.org
Crédito: Salamanca/creativecommons.org

Ele respondeu com frieza:

— Desculpe, querida, é que eles me fizeram uma oferta tentadora: pontos mil no ranking do game e a possibilidade de assumir o comando da gangue deles. ‘Cê entende, né?

E ele saiu do recinto da luta com cara de vitorioso (os garçons que se virassem), comandando os novos comandados. Antes, até se dignou a dirigir uma última palavra odiosa à ex-companheira de combates e trepadas nas ruínas do Teatro de Arena:

— Ora, paixão, ‘cê’ sabe: é apenas um jogo.

Sobre Carlãozinho Lemes

Antes do jornalismo, meu sonho era ser... astronauta. Meu saudoso pai me broxou: “Pra isso, precisa seguir carreira militar”. Porém, nunca deixei de ir transmutando a sucata anárquica dos pesadelos em narrativas cambaleantes entre ficção científica, uma fantasia algo melancólica, humor insólito e a memória — essa tumba mal lacrada de maravilhas malditas. Assim, é o astronauta precocemente abortado quem proclama: rumo ao estranho e às entranhas!

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9 comentários

  1. Salve Carlaõzinho. Chegou mais um grande companheiro. O texto está dez. Abração. Cacalo

  2. Soraya Aggege

    Muito bom, Carlão!!! Como sempre, texto sensacional. Parabéns!

  3. mario evangelista

    Sensaacional Carlão!!!Carai, fiquei com falta de ar!

    • Carlãozinho Lemes

      Legal, Marião, tua impressão é muito importante pra mi8m! Sdds d vc

  4. Lilo Clareto

    Bela viagem, Carlão! Seu texto continua afiado, mano.

    • Carlãozinho Lemes

      ‘Brigadu, saudoso amigo! Espero continuar “viajando” no teu gosto.