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A pedra que veio do nada

CacaloFernandes_0179_400x400De repente, quem diria, a vida de Ambrósio mudou. “O que aconteceu, meu Deus? O que estava acontecendo comigo?” se perguntava. Parecia uma praga invertida que atravessara sua vida. Ambrósio estava aliviado por um lado e angustiado por outro. Afinal, depois de tanta desgraça, vinha aquele tempo de calmaria. Ele olhava para o céu e questionava: “Para, não vem mais com novidade? Você é safado”!

Não veio mais novidade. Ele já começara conversar com o mundo para que ele lhe explicasse como tudo de ruim poderia aparecer por tanto tempo e sumira num instante, sem explicação. Esse tudo era tudo mesmo.

A escova de dente caía com a pasta lambendo o chão. O mesmo acontecia com o cachorro quente – e lá ia salsicha e todo o molho que fizera com suor danado. Até o cachorro, o único ser do planeta que ele achava que lhe respeitava, virou a cara de lado. Tudo virava desgraça. Era a praga acordada.

Mas as coisas foram passando de repente. E esse tempo desapareceu. Ele fechava os olhos. Abria devagarzinho à espera de alguma bomba. Fechava, abria, fechava, abria. Nada. Até que resolveu abrir pra valer. Nada mesmo. Será?

Ambrósio um dia resolveu até olhar para o espelho. Ele não fazia aquilo havia muito tempo. “Que cara feio!” dizia. Ele parecia o inglês Isaac Newton, que, em meados de 1600, inventou a Lei da Gravidade. Talvez depois que, diz a lenda, caiu uma maçã sobre sua cabeça, vinda de cima de uma árvore. Veio a luz. Devia ser muito alta. “Se eu vi mais longe, foi por estar sobre ombros de gigantes”, divagou Newton. Ficou pirado. Pelo menos um pouco.

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Ambrósio percebeu que precisava cortar o cabelo. Também as unhas. Tomar banho. Também comprar roupas novas. Remodelado, até achou que estava mais bonito. Um pouco, reconhece. Mas estava melhor. A cara não ajudava muito. E as pernas em sinal de parênteses também. Para o pescoço nem olhava. Era comprido demais. Teria que arranjar uma echarpe. Era isso!!! Enfim, teria que tratar desses detalhes. Pareciam nada, mas para algumas pessoas, como ele, era o máximo.

A caminhada rumo à beleza não foi fácil. Resultados animadores espiavam pela janela. Mas espiavam temerosos prevendo tempestade à frente e janelas em pedaços. O novo porem se apresentou. E trouxe situações inesperadas.

Ele arranjara até uma namorada. Era a Jussara, encantada, principalmente, com sua echarpe, meio cinza, meio vermelha que ele não gostava de tirar. Tornou-se, aliás, uma companheira inseparável do pescoço de Ambrósio.

E a namorada não era uma namorada qualquer. Está certo que era um tanto bunduda. Mas era uma bela bunda, achava. Ele a olhava quando eles iam ao supermercado e Jussara ia pegar frutas. Ele dizia que iria olhar a gôndola ao lado. Mentira. Ele mirava bem a retranca da moça.

Depois da namorada veio um amigo. Seu nome era Fausto, que conhecera no despachante, um sujeito, o Luís, que ficara mais íntimo quando teve que renovar todos os documentos perdidos no tempo da desgraça. Como Luís era um cara curioso, e queria saber tintim por tintim do sumiço, e Ambrósio voltou a acreditar que a boca servia para falar, ­- ainda mais com aquela echarpe nova -, lá foi ele falando, falando, falando.

Fausto deu então pra andar com ele, agora uma matraca que falava o tempo inteiro. Ambrósio descobrira a arte de falar. Às vezes, Fausto, ao andar ao seu lado, pensava no papagaio. Mas desligava logo da tomada. Desencana, pensava logo.

Um dia, Fausto, andando pela rua, resolveu até comemorar um mundo que também estava se exibindo como novo. Apanhou então uma grande pedra que estava no asfalto, esperou que todas as forças caíssem sobre seu braço esquerdo, aquele que, reconhecia, tinha uma força incomum, e lançou a pedra para bem alto – como aquelas pedras que se jogam na praia no sentido horizontal sobre as ondas menores, só que agora na vertical.

E foi alto mesmo. Ele quase a perdeu de vista. Mas depois notou que ela caia. Era na rua ao lado da que despencara. Ficou embasbacado com sua força. Caiu na rua ao lado daquela em que estava. Imaginou que até poderia ter pegado nas nuvens. Mas aí era sonho, talvez.

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E comemorou o arremesso. Não sabia que estava tão forte assim. Só faltou aplaudir. Mas ficava chato se alguém visse. Mas fez festa com o braço esquerdo  levantado para o céu. Eta. cara bom. Isaac Newton iria admirar.

No dia seguinte resolveu passar na casa do novo amigo, que parecia um velho companheiro, daqueles dos bons, supimpa… Bateu na porta. Ambrósio falou para que entrasse no quarto, mas falou de forma esquisita. Parecia que sua voz estava amarrada. Entrou. Ao entrar percebeu a cabeça do amigo estava toda abalroada. Estava enfaixada de cabo a rabo. Perguntou assustado: “o que é isso, um raio que caiu na sua cabeça?”.

“Acho que seria melhor. Um desgraçado, não sei de que forma, jogou uma grande pedra na minha cabeça, parecia um paralelepípedo. Ou talvez tenha vindo do céu. Se foi alguém, o cara devia ser um monstro de forte. Parecia que a pedra vinha lá das nuvens. Você acredita numa coisa assim”?

Foi um silêncio só.

Fausto não disse nada. Nem tchau. Até sair, tristonho, muito tristonho.

 

Sobre Cacalo Fernandes

Ser paulistano foi o início de uma história de quem certo dia decidiu ser um escrevinhador. Mas quando a calça deixou de ser curta, lá no início, ajudou a construir esse lado que um dia pareceu esquisito. E hoje acho que não poderia ser outro.

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2 comentários

  1. Carlãozinho Lemes

    Boa. Meio cáustica, mas muito boa. O despertar da pasmaceira às vezes é assim mesmo, com desfechos cruéis…