Crédito: Interdimensional Guardians/creativecommons.org
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Isso é no que dá confiar

A baixíssima estatura (menos que um metro e vinte e olhe lá) e o corpinho esquelético eram os meus trunfos para driblar os fiscais da prefeitura durante os rapas”, cada vez mais frequentes e agressivos no camelódromo: eu conseguia ziguezaguear quase imperceptivelmente entre as pernas dos transeuntes, trôpegas por causa do reboliço. Certo que minha cabeçorra oferecia alguma dificuldade, porém nada que uns “licencinha!, licencinha!”, grunhidos com minha voz algo metálica, não resolvessem.

Já a uma distância segura da repressão, ainda ouvia a torcida dos colegas camelôs que não tiveram a mesma sorte: “Força, anão, você vai conseguir mais uma vez!”

Após adentrar, esbaforido, o quarto da pensão, antes mesmo de tomar fôlego, tratei de conferir se havia conseguido entochar todas as minhas mercadorias dentro da mochila surrada: tinha sim, os prosaicos e simpáticos bonequinhos de epóxi estavam lá, prontos pra novas tentativas de venda. Sem lucros, mas tampouco sem prejuízos, contabilizei.

Mais relaxado, contudo triste pra caralho, me joguei no sofá-cama desbotado e, mais uma vez, me rendi a pensar na vida. Deuses, como cheguei a este ponto? Foi no que deu confiar nas boas intenções humanas que, como reza um provérbio antigo deste mundinho, só servem pra ladrilhar o caminho até o inferno.

No caso, confiar numa falácia pomposamente autointitulada Serviço Internacional de Proteção a Colaboradores Extraterrestres (SIProCEx).

Crédito: PROBrad Spry/creativecommons.org
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* * *

Ah, quer ouvir a história? Então senta, que é longa. Mas senta naquela cadeirinha de praia desconjuntada ali no canto, que no sofá-cama só cabe eu… e os parasitas de ocasião.

Já que você tá desconfortavelmente acomodado, saiba que vamos voltar quase 70 anos. E a história nem começou nesta parte do vosso mundo, não.

Sei lá por qual bug satânico nossa nave — na verdade, uma prosaica sonda pré-exploratória — se espatifou contra a crosta do planetinha que vínhamos observando.

Em 8 de julho de 1947, o jornal Roswell Daily Record publicou em primeira página a notícia de que o 509º Grupo de Bombardeiros da então Força Aérea do Exército dos EUA havia tomado posse dos destroços de um disco voador naquela localidade do Novo México (EUA). A notícia causou rebuliço, mas já no dia seguinte o jornal desmentiu a história, afirmando que os restos eram apenas de um balão meteorológico. É, o governo norte-americano não tardou em abafar o caso.

Fui o único sobrevivente: meus companheiros de tripulação não tiveram a mesma sorte: A-Wah-Errthigs morreu no impacto e Zha-Teorthet-Wyn experimentou uma sobrevida, infelizmente abreviada pelo afã ignorante dos vossos cientistas em uma desastrada vivessificação. Tem até um filmezinho da suposta autópsia de um dos meus companheiros, que vira e mexe pipoca na internet e que as autoridades sempre classificam de fraudulento. Procura lá, você acha.

Eu e os destroços da sonda fomos confinados num bunker na Base Aérea de Edwards, dentro da Área de Teste e Treinamento de Nevada, que hoje é conhecida como a mítica Área 51. Começaram então meticulosos esforços de engenharia reversa pra decifrar os segredos tecnológicos da nave e estudos sobre a minha fisiologia.

Lógico que, depois, naquela Área 51, enfiaram outros resíduos de naves e corpos de ETs a serem estudados, coletados posteriormente, mas nada que se comparasse aos do caso Roswell; tanto que levaram quase 70 anos pra se darem por satisfeitos (ainda bem que minha espécie é longeva em comparação com a humana…).

Crédito: Dann Toliver/creativecommons.org
Crédito: Dann Toliver/creativecommons.org

E, desde então, os achados nos destroços da nave vêm sendo empregados secretamente em diversas inovações tecnológicas que têm marcado as últimas décadas na Terra.

Quanto a mim? Bem, depois de me espetar com várias drogas, escanear meu cérebro e decifrar meu código genético, pareceram perder o interesse nessa parte: a prioridade era mesmo a engenharia reversa da nave.

Foi então que me submeteram a uma série de cirurgias plásticas, deixando-me o mais parecido possível com um humano — de pequena estatura e cabeçudo demais, que fosse. E me comunicaram que eu seria alocado no tal Serviço Internacional de Proteção a Colaboradores Extraterrestres. Ficou evidente que queriam livrar a Área 51 de um hóspede já inútil e até comprometedor.

Topei a parada, até porque nunca decidi nada naquele lugar.

* * *

O que eu não sabia era que a alocação seria numa pensão decadente numa cidade brasileira de porte médio. Nem que meu ganha-pão seria artesanato com… bonequinhos de ETs de epóxi.

Sobre Carlãozinho Lemes

Antes do jornalismo, meu sonho era ser... astronauta. Meu saudoso pai me broxou: “Pra isso, precisa seguir carreira militar”. Porém, nunca deixei de ir transmutando a sucata anárquica dos pesadelos em narrativas cambaleantes entre ficção científica, uma fantasia algo melancólica, humor insólito e a memória — essa tumba mal lacrada de maravilhas malditas. Assim, é o astronauta precocemente abortado quem proclama: rumo ao estranho e às entranhas!

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