O grande John (Foto André Sarria / Arquivo Pessoal)
O grande John (Foto André Sarria / Arquivo Pessoal)

O grande John e suas três patas

Andre_PB_400x400Minha família tem em casa o grande John, um cachorrinho que quando filhote se assemelhava a um morceguinho. John é uma mistura de alguma coisa com coisa nenhuma: pretinho, pequeno, magrinho e CHATO! E bota chato nisso! Ele tem um latido histérico e uma coragem que ultrapassa seu limite de tamanho, é daqueles pequeninos que impõem respeito, ou pelo menos ele acha isso.

Mas nem tudo é maravilha no reino do poderio do grande John. Um dia, durante uma briga com outros dois vira-latas, ele foi atropelado e, infelizmente, os veterinários tiveram que amputar uma de suas patas traseiras. Após algum tempo de recuperação John voltou a ser o velho chato de sempre, e não perdeu sua dignidade por nenhum momento. Bem, alguma ele perdeu. Suas tentativas de fazer xixi num poste definitivamente não parecem nada digno.

John sofre muito com carrapatos e constantemente temos que tratá-lo. e agora sem uma de suas patas traseiras a situação se complicou ainda mais pra ele.

A simpatia do John (Foto André Sarria/Arquivo Pessoal)
A simpatia do John (Foto André Sarria/Arquivo Pessoal)

John é um exemplo claro de como a raça, ou a falta dela, influencia na carga de carrapatos. Algumas raças de cachorros são mais resistentes do que outras e isso não é nenhuma novidade.

Recentemente realizamos na Faculdade de Medicina Veterinária na UFG um estudo envolvendo duas raças diferentes de cachorros: o beagle e o cocker spaniel. A escolha destas duas raças se deu ao fato de o beagle, em comparação com o cocker, é uma raça mais resistente. Se tivermos uma escala de preferência eles estariam em extremos opostos.

Nossa hipótese era de que talvez alguns compostos químicos liberados pela pele do beagle estariam contribuindo para manter a sua carga de carrapatos baixa.

A primeira parte do trabalho foi analisar os compostos orgânicos liberados pelos animais. Basicamente, foi meter dentro de um aparelho o cheiro extraído do beagle e do cocker.

Os resultados mostraram que o perfil químico de ambos era muito parecido, com algumas exceções, pois encontramos no beagle alguns compostos diferentes. Ele tinha em seu cheiro três outros compostos que o cocker não tinha. Estes três compostos foram identificados e poderiam ser uma pista do porquê os beagles serem mais resistentes ao ataque de carrapatos.

Tendo em mãos estes compostos químicos, fizemos testes com eles e descobrimos que dois deles estavam repelindo carrapatos e o que chamou a atenção era de que ele era produzido pelo beagle numa proporção de 2:1 e somente esta proporção causava a repelência. Em posse desses resultados desenvolvemos uma espécie de polímero (um plástico especial) que liberava estes compostos nesta exata proporção.

André e alguns dos cachorros da raça Cocker Spaniel que fizeram parte da pesquisa (Foto André Sarria/ Arquivo pessoal)
André e alguns dos cachorros da raça Cocker Spaniel que fizeram parte da pesquisa (Foto André Sarria/ Arquivo pessoal)

Basicamente fizemos o cocker ter o mesmo “cheiro” do beagle.

Para o teste de repelência o canil foi infestado com carrapatos e após alguns dias contamos a carga de carrapatos no cocker e…. no calor de Goiânia abrimos uma cerveja gelada para comemorar os resultados preliminares.

Os cockers que utilizaram as coleiras com os compostos encontrados nos beagles tinham muito menos carrapatos do que aqueles que estavam sem as coleiras. Os compostos encontrados não estavam matando os carrapatos e nem as ninfas, mas estavam repelindo-os e mantendo-os longe do cocker.

Ainda não testei esse colar no grande John. Pretendo fazer isso logo, e assim, ajudar o pobre morcego a ter um pouco mais de dignidade ao se coçar, pois autoestima é o que não falta nele!

Quem quiser saber mais sobre este trabalho deixo aqui o endereço de onde eles foram publicados:

“Quantification of brown dog tick repellents, 2-hexanone and benzaldehyde, and release from tick-resistant beagles, Canis lupus familiaris

http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1570023216301544

“Brown dog tick, Rhipicephalus sanguineus sensu lato, infestation of susceptible dog hosts is reduced by slow release of semiochemicals from a less susceptible host”

http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1877959X16301856

“Identification of non-host semiochemicals for the brown dog tick, Rhipicephalus sanguineus sensu lato (Acari: Ixodidae), from tick-resistant beagles, Canis lupus familiaris”

http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1877959X15001065

 

Notas:

Os compostos em questão são bastante voláteis e um deles tem um cheiro muito bom de amêndoas e não são tóxicos.

A coleta dos compostos voláteis da pele dos animais foi feita de tal maneira que os cachorros achavam que tinham ganhado uma massagem grátis.

O trabalho com os cachorros foi feito seguindo protocolos de bem estar animal com autorização de órgãos competentes.

Esta pesquisa foi realizada sob a supervisão da profa. Dra Ligia Miranda e seus alunos Jaires e Lorena.

Sobre André Sarria

Os certificados e papéis dizem que eu sou cientista, mas prefiro ser mais um "escutador" da natureza do que cientista. A natureza fala e eu a traduzo em linguagem de gente. Nasci em Cajobi e trabalhei em Londres como Pesquisador no Rothamsted Research. Atualmente moro em Madrid onde sou Diretor de Pesquisa e Desenvolvimento em uma empresa Europeia de agricultura.

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2 comentários

  1. Otro gran relato contado con gran sensibilidad! Y que nos descubre todo lo que la ciencia puede hacer para mejorar este mundo!

    Parabens y a por el próximo!

  2. Priscila Martins de Alexandre

    Eu não sei o que é mais prazeroso, ler as histórias ou o estudo científico. Mentira. Na verdade sei que é muito mais prazeroso ler algo científico introduzido por uma bela história.
    Muito obrigada pela forma de vincular a informação de maneira tão simples e interessante.

    Já fico esperando o próximo!
    🙂