Itamogi: rumo à pequena utopia
Itamogi: rumo à pequena utopia

O menino na noite dos vaga-lumes

Diz-se que uma das maiores tragédias dos tempos atuais é a ruína das grandes utopias. A humanidade, ou melhor dizendo a soma das civilizações humanas, sempre se nutriu de narrativas utópicas que lhe deram sentido e esperança. Pois agora estaríamos, segundo os mais céticos, presenciando o caos, a ruptura dos projetos utópicos, o que significa, no frigir dos ovos (seja lá o que frigir dos ovos signifique), estamos ferrados, não podemos e nem devemos acreditar em mais nada. Sobrariam as pequenas utopias, e me alimentei de uma delas há alguns dias, na minha querida Itamogi.

Sim, restariam as utopias menores, aqueles sonhos mais modestos, que podemos cultivar naquele recanto mais íntimo que apenas nós, cada um, conhecemos. Um lugar imaculado, que buscamos preservar a todo custo, que não deixamos corromper de forma alguma.

Nesse terreno tão único vicejam as pequenas utopias. Eu, pessoalmente, continuo me embebedando, aqui e ali, de fragmentos das utopias universais, hóstias, pães de paraíso que são. Mas também vivo, e sobrevivo, das utopias discretas, tentando percorrer as trilhas e superar os obstáculos de cada dia como se fosse uma viagem em direção à felicidade, ou no mínimo a tentativa de decifração do enigma que é existir.

Pois bem, há um mês, mais ou menos, embarquei em um desses pequenos ideais que nos movem e nos reinventam. A micro, singela utopia era, em uma ida – cada vez mais escassa, infelizmente – à minha cidade, à minha querida Itamogi, à minha Pasárgada , à minha Terra Sem Males, rever um menino que conheci na infância e uma noite, em particular, que esse menino testemunhou.

O menino voltava para casa, bem tarde e, não sei por que, sozinho, pois geralmente naquelas horas, e naquela circunstância, ele sempre estava acompanhado da suprema bondade e proteção da mãe. Lá ia a criança, inexplicavelmente sozinha, quando deu-se o milagre. Todas as luzes da cidade se apagaram, e isso não era incomum, 40, 50 anos atrás, em uma comunidade do interior.

Hoje ficamos indóceis, irascíveis mesmo, quando falta eletricidade após um temporal. Mas naqueles tempos sumir a luz, em curtos e às vezes longos períodos, era algo bem rotineiro, e aí o remédio era respirar fundo e esperar. Foi o que o menino fez. Respirou fundo e o que viu ele jamais esqueceria. Já bem pertinho de casa, aquela praça especial, onde teve tantas alegrias, em frente ao grupo onde estudou e fez seus primeiros contatos com o mundo, aquela pracinha humilde estava brilhando, luminescente, com o cintilante de uma infinidade de vaga-lumes. Em meio ao breu de mais um blecaute, naquela noite profunda e em sua inconsolável solidão, o pequenino viu a beleza, em seu mais estupendo formato.

Foi nesta praça, antes nua, pura terra, que o menino testemunhou o véu de vaga-lumes
Foi nesta praça, antes nua, pura terra, que o menino testemunhou o véu de vaga-lumes

Aqueles vaga-lumes incontáveis, acendendo e apagando, acendendo e apagando, eram de um encanto assustador, daqueles que dão vontade de chorar de tanta lindeza – lembravam a Noite Estrelada de Van Gogh, mas muito, muito mais maravilhosos, que me desculpe o sofrido artista holandês. Durou pouco, talvez alguns minutos, porque logo a energia voltou, e o contraste do pisca-pisca com a noite escura não tinha o mesmo efeito. Foi o suficiente, entretanto, para o moleque correr feliz e dormir satisfeito, depois de beijar e pedir a benção à mãezinha querida.

Era essa a suave utopia que eu abracei há um mês, na minha Itamogi, resgatar aquele garoto, naquela noite. Procurei-os em cada instante, em todo canto, e não posso dizer que os achei em sua integridade, mas tenho quase certeza de que identifiquei vislumbres deles, sombras que emergiam e logo sumiam, fugazes mas de tremendo impacto como aqueles insetos sublimes naquela noite imortal.

Vi lampejos do menino e da noite no abraço apertado, gostoso, em encontro inesperado com a amiga de criancice, ou no rápido, mas sempre intenso, reencontro com aquele que foi meio que o mentor, indicador de caminhos que existem além dos horizontes. Ou, sobretudo, no beijo do pai, fração de segundos em que uma vida inteira é recuperada.

Voltei para Campinas com o peito mais leve e renovado, o objeto de desejo alcançado. A infância está por lá e aqui, ela continua se inebriando e vibrando com a possibilidade do belo e bom, mesmo na noite mais turva e amarga, mesmo no solo eventualmente cruel, traiçoeiro e injusto da existência, porque os vaga-lumes pulsam na escuridão, renascendo no coração daquele menino. Quem sabe as pequenas, juntas, possam reacender grandes utopias.

Sobre José Pedro Soares Martins

Mineiro nascido com gosto de café e pão de queijo, ama escrever pois lhe encantam os labirintos, os segredos e o fascínio da vida traduzidos em letras.

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26 Comentários

  1. Silvia de Castro

    Que lindo! Saboreei cada instante desse relato poético pois , além da beleza escrita, é mais uma prova feliz da suprema importância ( para toda nossa vida) da criança que mora em nós…graças a Deus!.
    Parabéns, poeta!

  2. Gostei muito da sua experiência e da maneira como conta.

  3. Gostei muito da maneira como escreve a experiência do garoto.

  4. Olá José Pedro.
    Hoje em dia ficamos tão envolvidos com tanta coisa que nos esquecemos de parar e ir à Itamogi de cada um.
    Abraço

  5. Ilza Maria Gomes Cardeal Pimenta

    Encantada com este texto! Parabéns! E gratidão!

  6. Jane Guimarães

    Que lindo como você escrevê, fiquei muito emocionada ao ler e muito orgulhosa de saber que daqui saiu essa pessoa tão capacitada como você José Pedro.Orgulho de Itamogi,parabéns!! !

  7. Renato Fabretti

    Como sempre um M A R A V I L H O S O texto, que nos faz ver cada cena descrita. PERFEITO!

  8. Marilda Garcia Naves

    Texto lindo, fez eu viajar e relembrar momentos inesquecíveis que vive na minha infância na minha querida Itamogi. Obrigado e parabéns.

  9. Rubens Leonel Dias

    José Pedro, seu texto me fez voltar à uns cinquenta e poucos anos atrás quando eu ainda menino saia no terreiro de nossa casa na roça, com um tiçãozinho de fogo balançando pra lá e pra cá e de repente estava cercado de vagalumes pareciam estrelas iluminando a noite escura, que saudade e como é bom ter coisas para lembrar, pequenas utopias, saudosas lembranças.
    Parabéns José continue nos brindando com essas coisas lindas.
    Abraços

  10. Lindo texto José Pedro! Que continue viva essa criança dentro de você, cada vez mais,a qual me parece ter sido muito feliz. Grande abraço.

  11. Maria José S P Di Lello

    Amo você. Eu sei quem é esse menino. Pois nasceu nessa praça e viveu tb comigo. Como você é maravilhoso. Parabéns.

  12. Utopia, das grandes, querer reviver àqueles momentos. Mas os sonhos, existem! Lembro-me claramente de quando saíamos de madrugada, eu, garoto, acompanhando o papai, seu Chiquinho Soares, rumo ao nosso cafezal, nas proximidads da fazenda do Dr. João Nantes. Nosso caminho, vez em quando, era “clareado” ou pelo acende e apaga dos vagalumes ou pelo brilho intenso da lua cheia, que insistia em não ceder lugar ao sol, àvido por ocupar o seu posto real. Seu texto, brilhante diga-se de passagem, faz bater aquela saudade no peito e reviver os momentos mais belos acomodados. Nossa alma. Fecho os olhos e me vejo, de mansinho, atravessando a mesma pracinha ( a antiga, claro) sujando meus pés de terra vermelha, posto que na época, andava só descalço. Mas tinha a segurança de saber para onde ia. Havia, naquele cantinho perto dos eucalyptus do Pedrinho Guerra e do cemitério, a minaha casa….o meu porto seguro. Ler seu texto deu-me a sensação de estar ” voltando pra casa”. Parabéns

  13. Antonio Carlos Martins

    De repente toda lembrança vem a tona, a praça dos circos, das fogueiras, dos parques e das brincadeiras. Seu texto me fez reviver momentos inesquecíveis!
    Grande abraço e parabéns.

  14. Feliz de você que tem lindas lembranças. Feliz de você que tem como renovar energia. Feliz de você que que tem apego as suas raízes. Quando fala ou escreve, do seu passado,da sua infância com qualquer um desta terra torna-se real e presente porque nós também conhecemos seu passado, sua meninice, seus pais, até as casas que você viveu. Você também faz parte da história de muitos de nós.