Brasília: sede do poder e nestes dias do Fórum Mundial da Água (Foto Adriano Rosa)
Brasília: sede do poder e nestes dias do Fórum Mundial da Água (Foto Adriano Rosa)

Um pacto contra o ódio e a violência: seis pontos para debate

O momento mais tenebroso da votação da abertura do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff – que passou por 367 votos a 137 – foi a declaração de voto do deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ). Depois de elogiar Eduardo Cunha (PMDB-RJ), acusado na Operação Lava Jato de receber propina e que saiu fortalecido e pode sair ileso, Bolsonaro atirou: “Perderam em 1964, perderam em 2016. Contra o comunismo, contra o Foro de São Paulo. Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que foi o pavor de Dilma Rousseff”. Um insulto à presidente e a todos que foram torturados e mortos pelo regime militar. O auge do clima de ódio que tomou conta do país nos últimos meses e cuja superação talvez seja o maior desafio após o processo de impeachment, seja qual for o seu resultado.

Talvez seja impossível e inglório mapear a origem de tanto desamor, e provavelmente será impossível debelar todos efeitos nefastos da virulência que tomou conta das ruas e praças, e cujo maior beneficiado foi justamente o setor que Bolsonaro representa tão bem por ser tão mau – de quebra, além de ofender a presidente e o país, o deputado do horror ainda insultou o deputado Jean Willys (PSOL-RJ). O setor anti-vida, anti-diferença, anti-tudo o que representa esperança, alegria e fraternidade. O setor que há um ano não podia sair das sombras, pelo repúdio que a ditadura tinha majoritariamente na sociedade, mas que ganhou sobrevida e a chamada “visibilidade” com esses momentos de terror que o país tem vivido. Mas creio que dá para refletir sobre alguns pontos e a partir disso pensar em um possível pacto contra o ódio e a violência.

  1. Sistema político envelhecido. Era só ver o perfil dos deputados que falaram na votação do processo de impeachment. O nosso sistema está absolutamente envelhecido, é machista e autoritário. Não é possível pensar em nenhuma transformação efetiva sem mudar esse sistema e, sobretudo, aprofundar no sentido de uma democracia participativa, direta.
  2. A cultura em questão, o BBB em cena. Mas não se trata apenas de mudar o sistema político. Ele é muito determinado pelo que acontece na cultura, na forma como as pessoas encaram e fazem as coisas. E nesse sentido alguns movimentos muito sérios têm acontecido no país, sem a devida reflexão-ação. Talvez o mais representativo deles seja aquele que poderíamos denominar “fenômeno BBB”, para mim o espelho máximo de um estilo de vida (?) consumista e exacerbadamente hedonista e narcisista que vem ganhando hegemonia na sociedade brasileira. 29 de janeiro de 2002. Uma data para não esquecer. No momento em que tomava corpo a discussão sobre a sucessão do presidente FHC, tinha sua estreia, logo após mais um capitulo da novela O Clone, a primeira edição do BBB. Pouco mais de quatro meses após o 11 de setembro de 2001, a data que definiu os rumos dos primeiros 15 anos do século 21 no planeta, a entrada no ar do BBB abriu uma era no Brasil que, no meu modesto ponto de vista, tem sido marcada por mudanças culturais, políticas e sociais tão marcantes como aquelas provocadas pelos atentados ao WTC. Com o BBB, e com todos os reality shows do mesmo naipe, tornou-se vitoriosos a antipolítica, o voyeurismo, a vida sob vigilância, o exibicionismo e todos outros ingredientes associados a um modo de vida (?) cada vez mais consumista, individualista e imediatista. O futuro não interessa, então a tal da sustentabilidade é uma grande baboseira. Alguns estudiosos já detectaram essa tendência com muito mais propriedade. Frei Betto e Renato Janine Ribeiro já falaram sobre isso. Em seu projeto de poder, o PT não deu a devida atenção a esse incremento do consumismo e seus efeitos correlatos. Pensou que apenas a elevação da renda dos setores mais excluídos seria suficiente. Não foi. Trabalhar valores é fundamental.
  3. Violência na agenda, o octógono como símbolo. Outra área que não tem recebido a devida atenção dos poderes públicos (incluídos governos de todas cores partidárias) e sociedade em geral é a do incremento da violência no Brasil. Entre 1980 e 2010, mais de um milhão de pessoas foram assassinadas no Brasil, segundo o Mapa da Violência. A taxa média subiu de 11,7 homicídios por 100 mil para 26,2 por 100 mil em três décadas. Nos últimos cinco anos continuou a escalada da morte, com cerca de 40 a 50 mil assassinatos por ano. A cultura da morte parece estar entranhada na sociedade brasileira, a violência foi naturalizada, lembrando que nos últimos 20 anos programas de televisão nessa área tornaram-se campeões de audiência. Na minha opinião, o grande símbolo de como a violência tornou-se naturalizada é o status que ganharam as lutas praticadas no chamado octógono. No lugar da ágora, o lugar da reunião, da assembleia, ganhamos o octógono, em que as disputas são vencidas com a maior força física possível. Sem tratar da questão da violência enraizada, combate às drogas e armas incluso, não dá também para mudar efetivamente o país.
Um Brasil desenhado pelas crianças, utopia necessária e uma esperança (Foto Adriano Rosa)
Um Brasil desenhado pelas crianças, utopia necessária e uma esperança (Foto Adriano Rosa)

4. O papel da mídia. Tem sido muito comentado o papel da chamada grande imprensa na cobertura sobre o processo de impeachment. Sua parcialidade etc. Não dá para desprezar a esperada reação desse setor historicamente monopolizado com relação às propostas de democratização da mídia, discutidos em alguns momentos durante os governos petistas. Quando a presidente Cristina Kirchner aprovou lei nesse sentido na Argentina 2009, o sinal de alerta foi emitido com mais intensidade ainda (a revogação da Lei dos Meios de Comunicação foi um dos primeiros atos do novo presidente argentino, Mauricio Macri). Então é essencial aprofundar a discussão sobre a mídia, incluindo uma questão que julgo muito séria: no lugar do jornalismo investigativo, que às vezes essa mesma mídia monopolizada promoveu, passamos a ter um jornalismo com predomínio de foco nas personalidades, um jornalismo de entretenimento, muito típico da sociedade consumista já citada. O jornalismo investigativo foi muito reduzido, sendo agora praticado por grupos autônomos, e enquanto isso o segmento da grande imprensa passou a viver uma crise enorme, particularmente no segmento impresso. Sem uma mídia crítica, de fato pluralista (e muitas vezes o PT não é nada pluralista), não dá para termos mudanças reais. Mais do que nunca é momento de fortalecer os canais alternativos, que têm uma nova visão, mais arejada e atual, de jornalismo.

5. O peso das redes sociais. Se a grande imprensa, se os canais tradicionais de informação entraram em crise, por outro lado avolumou o papel e o poder das redes sociais. É impressionante como o ódio foi destilado por essas redes nos últimos meses. O debate de ideias, de conceitos, tornou-se impossível diante da avalanche de ódio promovida em redes que, segundo alguns estudos embrionários, têm o efeito de produzir bolhas de ideias, que acabam contaminando corações e mentes. Uma séria reflexão sobre as redes sociais é ponto central no momento atual e futuro.

6.São muitos pontos a considerar, inclusive os interesses de sempre de certos grupos políticos e econômicos e os sérios equívocos cometidos pelos governos petistas, por exemplo os erros na área ambiental (como o privilégio às fontes tradicionais de energia), o não-atendimento aos direitos dos povos indígenas, as parcerias feitas com grupos retrógrados (que votaram pelo impeachment ontem) e, claro, o distanciamento de bandeiras históricas (como o combate sem tréguas à corrupção, em todos níveis e esferas), o que ajudou a alimentar o clima negativo que levou à sessão da Câmara deste domingo, 17 de abril de 2016. Estes são apenas alguns que identifico no momento. Mas o essencial é que, sem um pacto de convivência, promoção do diálogo e valorização da diversidade, em todos os âmbitos, será cada vez mais difícil viver bem nesse país que poderia ser destinado apenas à alegria.

Sobre José Pedro Soares Martins

Mineiro nascido com gosto de café e pão de queijo, ama escrever pois lhe encantam os labirintos, os segredos e o fascínio da vida traduzidos em letras.

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2 Comentários

  1. Marcelo José do Canto

    Grande jornalista José Pedro… Uma reflexão que, com certeza, vale a pena ser considerada e analisada de uma maneira extremamente séria… Aliás… são textos assim que podem e devem contribuir para todos os tipos de leitores e, principalmente, para a classe jornalística… Muitas vezes fico chateado e triste com a posição violenta que alguns colegas que defendem seu ponto de vista adjetivando e atacando quem é contrário a sua ideia… Parabéns…