Meus livros na íntegra

 

MEUS LIVROS NA ÍNTEGRA

AGENDA 21 LOCAL PARA
UMA ECOCIVILIZAÇÃO
(Editora Komedi, 2005)

PREFÁCIO ECOPOLÍTICO E AMOROSO
     
Sessão do Tribunal Permanente dos Povos, também conhecido como Tribunal Lelio Basso, em Berlim, setembro de 1988, marcada por críticas às políticas do Banco Mundial
      É impressionante como o ser humano é capaz de surpreender, para o bem e para o mal. E nesses momentos em que somos surpreendidos por ações humanas pode acontecer uma iluminação, um insight, um vislumbre de que presenciamos algo muito importante, revelador e, por que não, revolucionário.
      Uma das mais doces surpresas que saboreei foi em outubro de 1988, em  pequena praça de Berlim, então ocidental, a poucos metros do famoso Muro erguido no ano em que nasci, 1961. Eu integrava um grupo de jornalistas brasileiros que participava de projeto de cooperação da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB).
      Era momento de descanso na intensa programação, que incluía acompanhamento da sessão do Tribunal Lélio Basso, que julgava “os crimes do Banco Mundial contra o Terceiro Mundo”. As ruas de Berlim estavam repletas de ativistas, muitos com o rosto coberto – eram militantes de grupos anarquistas de ação direta, não exatamente adorados pelos policiais alemães.
      Organizações de todo mundo estavam lá, para participar da sessão do Tribunal e outras atividades paralelas à reunião anual do Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial. Grupos anti-racistas da África, de indígenas latinoamericanos e asiáticos, os verdes alemães, as feministas de vários países europeus se misturavam, em clara avant-premiére do que ocorreria anos depois com o Fórum Social Mundial de Porto Alegre.
      Estava ali, nas esquinas da cidade que mais simbolizou a corrida armamentista, a divisão Leste/Oeste, a separação comunismo/capitalismo, a gênese do que anos depois seria batizado de movimentos anti-globalização – ou pelo menos contra a globalização dominada pelo dinheiro e pelo consumo, e não a globalização desejada, a da solidariedade e da reverência pela vida.
      O pedacinho de Brasil estava ali, na bandeira do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), que surgiu de repente, no meio daquela miríade de cores, idéias e emoções. Nem se imaginava que aquela reunião planetária – uma prévia do Fórum Global, realizado durante a Eco-92 em junho de 1992, no Rio de Janeiro – seria a última grande manifestação internacional antes da queda do Muro de Berlim, o episódio que mudou a cara do mundo e instalou uma Nova Ordem global – a Ordem dominada pela agenda ditada pelos Estados Unidos e aliados.
Manifestação antiglobalização nas ruas de Berlim, durante reunião do FMI-Banco Mundial: gênese do Fórum Social Mundial
      De qualquer modo algo pairava no ar. Existia, em meio àquele clima tenso, agravado pela presença de enorme aparato policial em toda Berlim Ocidental, uma nítida percepção de alguma coisa muito importante estava por acontecer. A sensação tornou-se ainda mais cristalina, naqueles minutos em que nós, jornalistas brasileiros, ajudamos a “pichar” o Muro de Berlim.
      Mas eu falava de insight, daqueles milésimos de segundo em que a intuição fala mais alto e ajuda a iluminar fatos e ocasiões que a razão instrumental não consegue identificar e muito menos compreender. Naquele cenário berlinense, de alta densidade de conflitos ideológicos e espelho da ciência e tecnologia em estado puro – a ciência e tecnologia das armas nucleares, que durante tantas décadas determinaram a política e a economia do sofrido e belo planeta Terra – o que me surpreendeu aconteceu  naquela pequena praça, com turistas, trabalhadores apressados e muitos idosos.
      Enquanto eu e outros dois jornalistas comíamos o inevitável sanduíche de salsicha, uma adorável velhinha se aproximou e nos deu uma garrafa de bebida. Não entendemos nada na hora. Só depois soubemos o que se passou. A velhinha morava em Berlim Oriental, a Berlim comunista, e já havia completado a cota de consumo a que tinha direito em seu rápido trânsito pela Berlim capitalista, a Berlim que recebeu enormes investimentos para se tornar uma vitrine brilhante do modo de vida que os socialistas estavam perdendo – o modo de vida do paraíso do consumo.
      A bebida que ela nos ofereceu era o excesso da cota diária. A velhinha não podia levar a garrafa para o outro lado do Muro, e preferiu oferecê-la para os jovens que com certeza não eram europeus e muito menos germânicos.
      Bebida forte, fortíssima, de derrubar qualquer Muro de Berlim, mas eu pessoalmente recebi aquele presente como um brinde à vida e à fraternidade universal, um brinde ao elo que liga a humanidade e ela à Terra, à Terra Nave Mãe e todas as suas criaturas.
      Os áridos anos inaugurais do novo século, do novo milênio, não são muito pródigos em exaltar esses momentos raríssimos em que nos sentimos parte de algo muito grande. Grande porque nos sentimos irmãos de toda a humanidade e demais espécies de vida. Grande porque desejamos, por causa do sentimento dessa união, e com toda força, que nossos irmãos e irmãs humanos e nossos irmãos e irmãs flores, frutos, animais e recursos naturais vivam em plenitude, vivam felizes e libertos para cumprir com dignidade o seu destino.
      O nome desse momento mágico, em que nos sentimos tão pequenos e ao mesmo tão grandes, com a consciência dessa unidade universal, é amor. Naquele minuto rapidíssimo, naquela Berlim que durante tanto tempo simbolizou o ódio, a separação e a distância – fermentos fatais para as guerras, frias ou quentes – eu senti o amor que sobrevive, no mais íntimo do coração humano, apesar de todos os podres poderes (obrigado Caetano), de todos ditadores e fanatismos que, volta e meia, tentam dividir, fraturar e rebaixar e desvalorizar a vida e a aspiração imemorial – do ser humano e da natureza toda – à cooperação, à ajuda mútua, à união.
      Naquele pequeno gesto da desconhecida velhinha teutônica, mas de significados tão amplos, vejo hoje, há 16 anos de distância, os germens que poderíamos denominar a Ecopolítica do Amor.
      Palavras desgastadas, essas, política e amor. Por tudo o que tem acontecido, em termos de corrupção e impunidade, sobretudo em um país ainda em construção como o Brasil, política deixou de ter o significado original da Polis, da cidade grega. Política, para os gregos, é a arte da busca do bem comum, é o cidadão preocupado com uma vida mais justa e feliz para os demais moradores da cidade, é o dirigente público – democraticamente escolhido pelos eleitores – preocupado apenas com o interesse público.
      Por causa da corrupção e dos crimes impunes, política virou palavra feia, a ser banida dos vocabulários, principalmente dos jovens e adolescentes, aqueles que, amanhã, vão dirigir sua cidade, o seu estado, o seu país. E por causa dessa distorção a atividade política virou, infelizmente, reserva de mercado da classe política, e não dos cidadãos todos, como deveria ocorrer. E sendo feudo de uns poucos, essa forma de política é autoritária, é anti-vida.
      Imperativo o resgate do sentido original de política, da arte do bem comum, se os homens e mulheres de boa vontade do século 21 quiserem continuar aspirando às necessárias transformações que todos, nós brasileiros, nós alemães ou nós asiáticos ou africanos, tanto precisamos e sonhamos.
      Assim como é também urgente, urgentíssimo, o resgate do sentido do amor. Especialmente em um país – de novo – como o Brasil, em que soa piegas ou fora de moda falar em amor, em um contexto de tanta violência, de tanta injustiça, de tanta barbárie cotidiana e de tanto medo de ser feliz…
      Mas se ainda quisermos –de novo – continuar acreditando em uma nova postura do ser humano com o ser humano e com os demais seres vivos, postura essencial à construção de um novo ideal civilizatório, é, também, imperativo o resgate do sentido da palavra amor.
Policiais tomam as ruas de Berlim, durante manifestações
críticas ao FMI e Banco Mundial em 1988
      Só respeitamos o que amamos, só desejamos vida plena e felicidade total de quem amamos – só alcançaremos a liberdade, a dignidade, a chamada inclusão social se amarmos, profundamente, no âmago de nossa alma, o outro ser humano, o outro que é o mesmo, o outro que é diferente mas é igual em humanidade e direitos. E se amamos a diferença e a diversidade entre os seres humanos, também devemos amar a biodiversidade, a diversidade de formas de vida que habitam a Terra, a casa comum de todos.
      Ecopolítica do Amor, talvez seja essa a atitude de que precisamos para percorrer as perigosas trilhas que o século 21 nos reserva. Ecopolítica porque a nova forma de fazer política deve considerar não apenas a busca da relação mais igualitária entre seres humanos  – ênfase que marcou o marxismo, por exemplo. A sobrevivência da vida no planeta depende, hoje, mais do que nunca, da política implícita e explícita também na relação entre o ser humano e o seu entorno, o meio ambiente, o ecossistema urbano e biótico em que vive.
      Na Ecopolítica estão, ainda, os sinais de uma nova forma de fazer a própria política tradicional – não mais a política exclusiva das máquinas partidárias, mas da proatividade cidadã integral, da transparência, da ação em rede, do protagonismo das organizações da sociedade civil.
      E Ecopolítica do Amor porque, ao contrário do modus operandi tradicional da política, focado no conflito, na disputa, da luta pela sobrevivência do mais forte sobre o mais fraco, a construção de uma nova civilização depende de uma política amorosa, baseada na cooperação, no auxílio mútuo e na busca da unidade na diversidade – temas caros a autores que pensam ecopolitica e amorosamente, como Fritjof Capra, Leonardo Boff ou Edgar Morin.
      Entendo que a Ecopolítica do Amor, como método de ação cidadã, como postura do ser humano em sua cidade e no seu planeta, encontra no início de um novo século, de um novo milênio, oportunidade histórica exponencial para ser utilizada. Isso por uma das características centrais das grandes transformações aceleradas pela queda do Muro de Berlim.
      Essa característica é, na minha opinião, a da emergência do que eu chamaria de Nanocultura. A Nanocultura é uma decorrência direta das dinâmicas e cada vez mais velozes mudanças  a que nós, espectadores privilegiados da transição de milênios estamos assistindo, nos vários campos da atividade humana.
      Nanoeletrônica é uma das palavras-chave na física e ciências em geral desses nossos tempos. Robôs em miniatura, circuitos integrados que cabem na ponta de um dedo, chips de altíssima performance em tamanho milimétrico – essa é a cara da Nanoeletrônica que está sendo produzida em laboratórios high tech em vários países. Ao mesmo tempo, as novas descobertas em biotecnologia também apontam para essa ênfase no micro do micro, e não no macro ou no gigante.
      Da mesma maneira, é cada vez mais valorizada a procura do que genericamente se chama de “vida simples”. As grandes estruturas urbanas estão cada vez mais saturadas e esgotadas. É nítida, em várias partes do mundo, uma corrente contrária ao espírito da urbanização sem limites que foi hegemônica na segunda metade do século 20. O negócio é ser pequeno, é o que querem dizer hoje grupos e faixas populacionais cada vez maiores, em uma eloqüente confirmação do que já vislumbrava, na década de 1960, Schumacher, o autor de Small is Beautifull.    
      E mais. No campo da cultura, um dos fenômenos subjacentes ao processo de globalização é a valorização acentuada do que é local, dos valores culturais próprios de uma comunidade ou de um grupo étnico e/ou social específico. Não à hegemonia cultural dessa ou daquela origem, sim à valorização da diversidade cultural, viva os valores culturais mesmo que de um grupo indígena pequeníssimo em termos populacionais, mas valiosíssimo pelo que tem de tradição e sabedoria acumulada através dos tempos.
      No campo religioso a ordem do dia é a  mesma. Enquanto se assiste a uma crise das grandes instituições religiosas tradicionais, assiste-se à proliferação de pequenas denominações.
      E mesmo na política tradicional ocorre algo semelhante. O momento é de profunda crise nas grandes estruturas partidárias tradicionais, que lutam para se manter e manter o seu poder, enquanto pequenos movimentos e pequenas siglas avançam e ganham espaços. Quem diria que aqueles verdes a quem assisti com “água na boca”  na Berlim de 1988 (como a lendária Petra Kelly ou o então ascendente Joska Fischer, agora ministro das Relações Exteriores) um dia chegariam ao poder na racionalíssima e conservadoríssima Alemanha?
      Quem diria que, no Brasil dominado há séculos pelas elites e seus partidos gigantes, seriam eleitos presidentes da República alguém de um minúsculo partido (Fernando Collor de Mello, ressalvando-se que ele teve apoio de um gigantesco aparato de mídia) ou, depois, alguém da classe operária e que ajudou a construir um partido pequeno no começo (Lula e o PT)?
      Esses são os sinais de uma nova era, a Era da Nanocultura, em que a Ecopolítica do Amor pode ser, talvez, eficiente instrumento pedagógico de ação e transformação. E o espaço em que a Ecopolítica do Amor pode agir e a Nanocultura se materializar é o município – o menor espaço político.
      Se, tradicionalmente, as grandes tensões e disputas políticas ocorreram na história visando a mudança dos poderes centrais, dos governos federais ou no máximo estaduais, as transformações mais sensíveis e consistentes que tendem a se sedimentar na Era da Nanocultura serão na esfera do poder local, dos municípios e, principalmente, das cidades. Emerge, como ocasião histórica para viabilizar essas transformações, o conceito/sonho da Agenda 21 Local.                 
      No prefácio de seu importantíssimo O Ponto de Mutação, Fritjof Capra assinalava, em abril de 1981, que vários movimentos sociais gestados nos anos 1960 e 70 – movimentos feministas, ecológicos, pacifistas e outros – ainda não haviam detectado seus pontos de conexão, no sentido da arquitetura de uma ampla e poderosa aliança. Seu livro foi pensado, então, como um instrumento a “fornecer uma estrutura conceitual coerente que ajude esses movimentos a reconhecer as características comuns de suas finalidades. Assim que isso acontecer, podemos esperar que os vários movimentos fluam juntos e formem uma poderosa força de mudança social” (Fritjof Capra, O Ponto de Mutação, Editora Cultrix, São Paulo, 1995, pág.14).
       Nas últimas duas décadas do século 20 e primeiros anos do século 21 algumas coalizões foram esboçadas, com sementes lançadas em momentos como as manifestações em Berlim, outubro de 1988. O Fórum Social Mundial de Porto Alegre foi, talvez, o momento mais consistente nesse sentido, e é muito significativo que ele tenha acontecido no Brasil que, como veremos, tem sido pródigo em apontar para ações em rede, e na base das sociedades.

Fórum Social Mundial de 2005, em Porto Alegre: outro mundo é possível? Este mundo é possível? 

      Mas é essencial que, de fato, as coalizões sejam alcançadas na base da sociedade, na dimensão primária da organização social que é o local, o município. E a Agenda 21 Local pode representar, na minha opinião, importante programa para viabilizar, em esfera local, as conexões, as alianças, as coalizões, que são na prática o rompimento com o pensamento cartesiano, que separa, que divide, que impede a união.
      O objetivo desse pequeno livro é, nessa linha, formular algumas idéias acerca do potencial transformador da construção de Agendas 21 Locais, no cenário da emergência da Nanocultura e visando edificar um novo ideal civilizatório, tendo como método e instrumento a Ecopolítica do Amor.      Na prática recupero alguns conceitos que utilizei em outro livro de minha autoria, Terra Nave Mãe – Por um socialismo ecológico (Traço a Traço Editorial e CEPE, 1991). Sob a influência das dramáticas mudanças no teatro geopolítico internacional pós-fim da Guerra Fria, e da segunda Guerra do Golfo do início da década de 1990, em Terra Nave Mãe defendi que o socialismo poderia ser reformatado, em uma perspectiva ecológica, a partir da reavaliação e incorporação de conceitos como Ecopolítica, Ecodesenvolvimento e Ecofeminismo. Foi uma das primeiras obras no Brasil a tocar em eco-socialismo – conceito ainda não muito bem debatido até este conturbado início do século 21, talvez por uma incapacidade histórica da esquerda em tratar da questão ecológica.  
       Entendo que agora, no começo de uma nova década e de um novo século e de um novo milênio, esses conceitos – e mais outros – podem novamente ser importantes na configuração das Agendas 21 Locais como programas de ação para uma nova civilização, no marco da Nanocultura e tendo como a Ecopolítica do Amor como método e instrumento revolucionário de ação.
      A consciência de que a Agenda 21 Local é oportunidade histórica para  praticar o potencial criador do ser humano foi sendo consolidada no autor não apenas em função dos aportes teóricos ou pelo contato direto, como jornalista, com momentos cruciais para a história recente da humanidade e particularmente para a Terra Brasilis – como o citado encontro de Berlim, a Consulta Justiça, Paz e Integridade da Criação (Seul, 1990), a própria Eco-92 e, no Brasil, a elaboração da nova Constituição em Brasília.
      Nos primeiros anos do novo século tive oportunidade de atuar, como coordenador, participante ou jornalista, de iniciativas – no contexto da Região Metropolitana de Campinas (RMC), interior do estado de São Paulo – relacionadas à Agenda 21 Local, que ajudaram a reiterar a crença no seu enorme potencial para ajudar a construir o novo marco civilizatório.
      Em 2001 coordenei, junto ao Projeto Correio Escola da Rede Anhangüera de Comunicação, em Campinas, um curso sobre Agenda 21 Local, direcionado aos professores de várias escolas da cidade e região. O conteúdo do curso resultou no livro Agenda 21 Municipal na Região Metropolitana de Campinas, lançado em 2002, mesmo ano de lançamento de A Década Desperdiçada – O Brasila Agenda 21 e a Rio+10, balanço crítico do que o Brasil cumpriu, ou não, do programa da Agenda 21 global aprovada na Eco-92 (os dois livros pela Editora Komedi). Em 2003 a “Agenda 21 Local do tamanho de Campinas” foi o tema do primeiro curso da Universidade Aberta do Meio Ambiente, projeto que passei a coordenar no Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA),  instituição criada em 1901, e cujos idealizadores já tinham a noção da necessidade de não-separação desses três campos do conhecimento humano. A partir de 2002 o autor acompanhou e/ou participou do processo de construção de Agendas 21 Locais em Sumaré, depois Campinas e, finalmente, em toda RMC.           
      A visão que em mim foi fortalecida é a de que a Agenda 21 Local é realmente transformadora, mas muito mais do que apenas na esfera do que se convencionou como ação política e/ou ecológica. A Agenda 21 Local só tem sentido, para mim, se revelar a poesia das cidades e de seus  moradores – seres humanos e demais seres vivos. A poesia que se esparrama pelas esquinas, pelas ruas e pelos dobres dos sinos que nos despertam de nossa frenética letargia, de nossa mente eletronizada, de nossa pressa letal.
      A Agenda 21 Local tem sentido se for para desnudar a carne viva das cidades, que se esconde sobe essas horrorosas mantas de asfalto e concreto. A carne viva da alma de João, de Rita, de José, de Maria, de Jéferson e de Clara.
      Que desperte e resgate e multiplique a energia contida nas favelas, nos hospitais, nas escolas, nos bancos das Igrejas e nas camas dos hospitais.      Uma Agenda 21 Local que traga a vida de volta, a vida que não se aprisiona,  não tem ciúme, não tem medo da felicidade e que é a prima irmã da liberdade.     
      A visão subversiva da vida, que teima em escancarar a beleza do avesso do avesso do avesso (Caetano, em homenagem ao querido Toninho), que celebra a diversidade mas que não aceita o que destrói e torna desigual pela injustiça.
      A vida do sorriso das crianças, na sabedoria dos velhos, nos versos e na prosa dos loucos, na maravilha do vôo dos pássaros e do desabrochar das pétalas de ipê que dão cor e aroma para as cinzas cidades de ferro e aço.
      A vida resgatada dos rios canalizados pela ignorância, pela cobiça e pela cegueira. A vida resgatada das matas ciliares que pedem um novo olhar sobre a divindade e a magnitude da vida.
      A agenda 21 como espelho da nova constelação de saberes – saberes imemoriais, seculares ou novíssimos ou prenunciadores do futuro que já chegou. Esta é a Agenda 21 Local que pode ser transformadora e anunciadora – portal – da nova civilização.
PS conceitual: Uma nova cultura, para nova civilização – a Ecocivilização – começa com a mudança de conceitos. Em sua Aula, Roland Barthes acentuava como a língua é instrumento de poder. “A linguagem é uma legislação, a língua é seu código. Não vemos o poder que reside na língua, porque esquecemos que toda língua é uma classificação, e que toda classificação é opressiva” (Roland Barthes, Aula, Editora Cultrix, São Paulo, página 12). A língua reflete um pensamento, uma cultura entranhada na linguagem. A língua é excludente, deixa de fora o que essa cultura não aceita. “…a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (Barthes, op.cit, página 14).
      É preciso cuidado com o que se fala. O que se fala já mostra um ponto de vista. Por isso neste livrinho falo em países biodiversos e não do Terceiro Mundo, pois seria admitir que os chamados ricos são o que se considera Primeiro Mundo – o Brasil tem o maior volume de água e a maior floresta tropical do planeta, e só por isso, para mim, ele poderia ser considerado  Primeiro Mundo. Falo então em países biodiversos – países, como o Brasil, ricos em recursos naturais e biodiversidade, biológica, cultural e étnica.     
      Outra coisa: vou falar muito em civilização, ou sociedade, ou ordem, tecnocrática, que para mim caracteriza melhor a moderna sociedade ocidental. Uma sociedade sujeita ao paradigma excessiva cientificista e tecnocrático, e por isso mesmo de algum modo autoritária politicamente, excludente socialmente e destruidora ecologicamente.
      E uma sugestão, de novo citando Barthes, para se sair das armadilhas da língua. “… a nós, que não somos nem cavaleiros da fé nem super-homens, só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura” (Barthes, op.cit, página 16). A boa literatura – ela diz mais e melhor do que mil ensaios políticos ou sociológicos ou…
Campinas, 25 de setembro de 2004, Ano 15 CR
CAPÍTULO I
CRISE GLOBAL, DA CIÊNCIA E DAS CIDADES
      Como tantas outras palavras desgastadas e canibalizadas pelo império avassalador da mídia, crise se tornou sinônimo de algo geralmente ruim, sinal de decadência e prenúncio da morte. Pode ser, mas o significado original de crise em grego, não podemos nos esquecer, é a de oportunidade de mudanças. A crise global da transição de séculos e milênios a que estamos presenciando é uma dessas raríssimas e riquíssimas oportunidades de mudança na biografia do planeta Terra e da humanidade.
      Raras vezes na história a comunidade humana teve tanta oportunidade de mudança como agora. Períodos mais largos como o do florescimento da filosofia e do pensamento crítico e racional na Grécia antiga e o Renascimento, e em escala menor a Revolução Francesa e os conturbados anos 60 do século 20 foram alguns desses momentos cruciais, nevrálgicos, que modificaram para sempre gestos, comportamentos e formas de pensar da humanidade – ou ao menos no espaço do Ocidente.
      Pois a atual crise é de magnitude semelhante ou, em alguns aspectos, superior, ao atingir a escala planetária e todas dimensões da ação humana e fluxos vitais da biosfera. Não apenas sociedades, mas também o entorno, o meio ambiente, o meio biótico, estão passando por mutações inéditas e muito, muito perigosas. Somente o potencial da engenharia genética, que fornece ao ser humano os mecanismos para construir uma natureza – a pós-natureza – à sua imagem e semelhança dá uma idéia do que estamos dizendo.
      E se à primeira vista as tendências podem parecer assustadoras, agravando o nihilismo e a desesperança muito típicas da passagem sobretudo de milênios, a atual crise global também implica em claras oportunidades positivas de construção de algo novo, de uma civilização nova, de respeito integral entre os seres humanos e entre eles e a natureza. Uma civilização amorosa, com certeza.
      É nessa perspectiva, de que algo bom possa sair da neobarbárie do início do século 21, que, creio, devemos encarar a atual crise e seus múltiplos desdobramentos. E nem precisaremos nos alongar no diagnóstico dessa crise, o que já foi feito, com enorme propriedade e sofisticação, por muitos pensadores – como os já citados Capra e Morin, e também, de modo muito precoce e profético, pelos integrantes da Escola de Frankfurt (Herbert Marcuse, Theodor Adorno, Walter Benjamin etc), ou os teólogos da libertação (os irmãos Boff, Hugo Assmann etc), ou os novos críticos da globalização, como James Petras,  Edward Said ou Ignácio Ramonet. 
      De qualquer forma, é construtivo enumerar alguns indicadores dessa crise global e sistêmica, pois é sobre eles que pode atuar, de modo eficaz e plural, a Ecopolítica do Amor, no sentido da construção de Ecocidades como espelhos de uma nova civilização, a partir do programa das Agendas 21 Locais.
INDICADORES DA CRISE GLOBAL
      Alguns fatos e números, muitos deles conhecidos do leitor, são suficientes para assinalar o caráter global e sistêmico da atual crise planetária e civilizatória:
·       A injustiça no fluxo e consumo de recursos entre Norte e Sul – Mais de 90% das informações difundidas pela mídia ao Sul do Equador são produzidas pelas agências e corporações sediadas nos Estados Unidos e Europa. Um cidadão médio dos Estados Unidos consome 22 vezes mais energia do que um brasileiro e 360 vezes mais do que um cidadão de vários países da África. Uma grande corporação transnacional movimenta, no início do século 21, valores equivalentes ao de vários países africanos.
·       Protecionismo dos ricos prejudica os pobres – Os países em desenvolvimento perdem cerca de US$ 100 bilhões por ano, por causa do protecionismo praticado pelos países ricos (segundo o estudo Globalizaçãocrescimento e pobreza – A visão do Banco Mundial sobre os efeitos da globalização, do Banco Mundial, Editora Futura, São Paulo, 2003, pág.25).
·       Ajuda oficial ao desenvolvimento em queda acentuada – Nas últimas décadas do século 20 foi intensificada a campanha pela destinação de 0,7% do PIB dos países ricos para programas de ajuda aos países em desenvolvimento. A meta foi reiterada na Agenda 21 aprovada na Eco-92. Entretanto, a média de Assistência Oficial para o Desenvolvimento apenas caiu, de 0,35% em 1986, para 0,22% no início do século 21, segundo o Banco Mundial. Na Alemanha, a destinação oficial era de 0,48% do PIB no início da década de 1980, caindo para 0,27% duas décadas depois. Países escandinavos e Holanda lideram o ranking de destinação.
·       Migração ilegal aumenta – Após a queda do Muro de Berlim, a migração ilegal aumentou em escala crescente para a União Européia, de cerca de 50 mil pessoas em 1993 para 500 mil em 1999, segundo o Centro Internacional para o Desenvolvimento das Políticas Migratórias. O comércio da migração ilegal é estimado em cerca de US$ 10 a US$ 12 bilhões/ano (Banco Mundial, op.cit, pág.114).
·       Terrorismo globalizado agrava pobreza – O terrorismo também foi globalizado. E o incremento do terrorismo pode intensificar o processo de pauperização. O Banco Mundial calcula que, em função dos ataques terroristas a 11 de setembro de 2001, cerca de 10 milhões de pessoas foram adicionadas ao contingente vivendo em situação de pobreza no mundo (Banco Mundial, op.cit, pág.172).
·       Corrida armamentista volta a crescer – Um dos efeitos positivos da queda do Muro de Berlim havia sido a atenuação da corrida armamentista global. Os gastos militares globais declinaram de US$ 762 bilhões em 1993 para US$ 690 bilhões em 1998, nos cálculos do Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI). Os atentados de 11 de setembro de 2001, em Nova York e Washington, detonaram a retomada da corrida armamentista. Os gastos militares atingiram  US$ 741 bilhões em 2001 e US$ 784 bilhões em 2002. A Agenda 21 previa a necessidade de investimento de US$ 600 bilhões por ano para equacionar todos os desafios sócio-ambientais globais em pouco mais de uma década. Apenas com o dinheiro gasto em armas isso seria possível.
  • Nunca houve tantos pobres –  No início do século 21 cerca de 2,8 bilhões de pessoas ganham menos de 2 dólares por dia, e 2,4 bilhões – ou cerca de 30% da população mundial – não têm saneamento básico adequado. A ONU estima que metade da população mundial, ou 4 bilhões de pessoas, poderão sofrer com a falta de saneamento básico em meados do século 21.
  • Velocidade inédita no consumo de recursos naturais – Um europeu consome hoje 60 vezes mais energia do que alguém da era dos caçadores/coletores.
·       Países ricos são os grandes poluidores globais – Os Estados Unidos, sozinhos, são responsáveis pela emissão de 25% dos gases-estufa, tendo 4% da população mundial. Por causa disso, e dos impactos para sua economia com a tomada de medidas de prevenção à emissão de gases atmosféricos, os EUA têm-se recusado a ratificar o Protocolo de Kyoto, de 1997.
·       Situação dramática nos recursos hídricos –  Em 2003 foi publicado o Informe Mundial sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos, fruto de trabalho de 23 agências e secretarias das Nações Unidas. O Informe acentuou que, na pior das hipóteses, 7 bilhões de pessoas, correspondendo a 80% da população mundial, em 60 países, sofrerão com a falta de água ou com problemas de saneamento até 2050, quando o mundo terá 8 bilhões de pessoas. Isso se não forem tomadas medidas urgentes, urgentíssimas – no início do século 21 são 2 bilhões de pessoas, 30% da população global, com falta de água ou saneamento, o que provoca a morte de 6 mil pessoas por dia, uma tragédia colossal, que não aparece na mídia. O volume de reservas mundiais cai a cada dia, no contexto da civilização tecnocrática, de 16.800 metros cúbicos por pessoa/ano em 1950 para 7.300 m3 por pessoa/ano no final do século 20, com projeção de alcançar 4.800 m/habitante/ano em 2020, se as citadas medidas não forem tomadas – medidas como uso mais racional da água, reuso, combate a perdas, tratamento amplo de esgotos domésticos e industriais, recomposição de matas nativas e combate a todas outras formas de poluição. A escassez de recursos hídricos tem-se tornado motor para importantes conflitos – o Informe Mundial revelou que desde a década de 1950 foram registrados 507 conflitos internacionais envolvendo água, sendo 37 resultando em ações violentas, 21 delas com operações militares. É a guerra pela água, que se avizinha no horizonte, como uma das grandes ameaças do século 21.

Rio Xingu, em Altamira (PA): maior reserva de água doce do mundo praticamente não tem esgoto coletado e tratado

      Os desafios suscitados por essa crise global e ecossistêmica devem ser encarados exatamente nessa perspectiva. É uma crise múltipla, e portanto merece uma abordagem múltipla, multi e pluridisciplinar. Mas essa reflexão plural apenas será possibilitada por uma nova visão da Ciência e da Tecnologia, cuja configuração e evolução desde o final do século 19 têm sido, para muitos autores, um dos fatores centrais da grande onda que levou à crise global de que estamos tratando. E qual o caráter, então, dessa outra crise, a da Ciência e da Tecnologia?
A CRISE DO PENSAMENTO CIENTÍFICO
      O aparato científico e tecnológico é a grande referência da civilização tecnocrática, que evolui ao longo de largo período histórico, para se sedimentar no século 20. A gênese da civilização tecnocrática pode ser  situada na Grécia dos séculos 5 e 4 Antes de Cristo, quando o Logos, a palavra mediada pela razão, se expressa como conquista do avanço da humanidade.
      No Renascimento a razão recebe um novo impulso, quando o mundo se torna cada vez mais a semelhança do homem – não da humanidade, mas do homem mesmo, sexo masculino, reforçando o Antropocentrismo que o Cristianismo ajudou a se tornar dominante.
      Nasce o método científico, a partir das idéias de Galileu Galilei (1564-1642) e de Kepler (1571-1630). Era o momento das grandes navegações, do contato do europeu com o desconhecido. Nem é preciso lembrar que, por suas idéias, que contrariavam o saber consagrado pela tradição religiosa católica, Galileu foi condenado pela Inquisição – principalmente por ter defendido que o Sol, e não a Terra, era o centro do universo.
Florença, território por excelência do humanismo, que colocou em xeque o Cristianismo tradicional
     Foi um dos dois grandes golpes no Cristianismo, segundo o missionário irlandês Sean McDonagh, que viveu muitos anos nas Filipinas. Em seu livro To Care for the Earth: a Call to a New Teology, de 1966, McDonagh assinala que os dois outros golpes no Cristianismo foram a Peste Negra, que devastou a Europa entre 1347 e 1349 (sendo explicada pelos sacerdotes como uma punição divina, o que reiterava a idéia de um Deus opressor), e as idéias de Charles Darwin (1809-82), com sua Teoria da Evolução.      
      Depois veio a Era das Luzes, do Iluminismo, típico do cartesianismo, o pensamento científico se consolida – entre os séculos 18 e 19 Depois de Cristo, como o grande paradigma da nova civilização tecnocrática.
      Fundamental acentuar que não foram poucas as vozes que ao longo dos séculos têm alertado para os riscos do paradigma científico. Paradoxalmente, foi um dos maiores nomes do humanismo renascentista, Erasmo de Rotterdam, quem elaborou uma das grandes peças de acusação contra a arrogância humana de querer saber tudo e, com isso, tudo poder.
     Padre Erasmo foi um ácido crítico do poder eclesiástico, e compartilhava das idéias humanistas dos séculos 15 e 16. Não se privou, contudo, de ridicularizar a aura divina de que os sábios, filósofos e sacerdotes se revestiam através dos tempos. Em 1509 Erasmo vai à Inglaterra, hospedando-se na casa de Thomas Morus, futuro autor de A Utopia, de 1516.
      Na casa de Morus é redigido por Erasmo o Elogio da Loucura,  no qual ironiza a aura divina auto atribuída pelos sábios da época. Ele não perdoa, com humor, a pose de seriedade dos grandes sábios da humanidade:
      “Convidai um sábio para um banquete, e vereis que ou conservará um profundo silêncio ou interromperá os demais convidados com frívolas e inoportunas perguntas. Convidai-o para um baile, e dançará com a agilidade de um camelo. Levai-o a um espetáculo, e bastará o seu aspecto para impedir que o povo se divirta”(Erasmo de Rotterdam, Elogio da Loucura, in Erasmo, coleção “Os Pensadores”, Editora Abril-Nova Cultural, várias edições).
      E mais, em crítica clara à civilização tecnocrática que se esboçava:      “Digamos, pois, francamente, que a ciência e a indústria se introduziram no mundo com todas as outras pestes da vida humana, tendo sido inventadas pelos mesmos espíritos que deram origem a todos os males, isto é, pelos demônios, que por sinal tiraram da ciência o seu nome” (Erasmo de Rotterdam, op.cit.).
     E prossegue, no libelo de acusação da visão antropocêntrica:  “Nada disso se conhecia no século de ouro, em que, sem método, sem regra, sem instrução, os homens viviam felizes, guiados pela natureza e pelo próprio instinto” (Erasmo de Rotterdam, op.cit.).
      E mais, em discurso muito avançado para sua época, à luz da atual crítica ao paradigma científico e tecnológico:  “Afirmo que os que se aplicam ao estudo das ciências estão muito longe da felicidade e são duplamente loucos, porque, esquecendo-se de sua condição natural e querendo viver como outros tantos deuses, fazem à natureza, com as máquinas de arte, uma guerra de gigantes” (Erasmo de Rotterdam, op.cit.).
      Mas o ideal renascentista, do qual Erasmo foi ao mesmo tempo contribuinte e crítico, foi revigorado com a Dupla Revolução, a Francesa e a Industrial. E no final do século 19 outra voz se levantava contra o racionalismo excessivo, a de Nietzche, que detectou o início da decadência do Ocidente quando abriu mão dos mitos mais caros à consciência – e alma – da humanidade, em favor da lógica, da dialética, da explicação para tudo.
      Para Nietzche, isso ocorreu a partir de Sócrates e, concomitantemente,do desaparecimento do coro da tragédia grega – o coro, para Nietzche, seria a celebração da vida, apesar dos momentos trágicos para a humanidade. A eliminação do coro, na visão do filósofo alemão, correspondeu ao momento em que o homem passou a querer dominar as forças da natureza e, assim, controlar o seu destino.
      A tese de Nietzche foi aprimorada por Max Horkheimer e Theodor Adorno, dois expoentes da Escola de Frankfurt, em Conceito de Iluminismo, texto de 1947 – dois depois, portanto, da Segunda Guerra Mundial, em que o paradigma científico/tecnológico foi fonte de poder, morte e horror, com as mortes programadas cientificamente.
      Os autores assim definiram o Iluminismo, filho dileto da visão antropocêntrica de Sócrates e outros fundadores do Ocidente, reforçada pelo Cristianismo: “O programa do Iluminismo era o de livrar o mundo do feitiço” (Max Horkheimer e Theodor Adorno, Conceito de Iluminismo, in BenjaminHabermasHorkheimer e Adorno,coleção “Os Pensadores”, Editora Abril-Nova Cultural, várias edições).
      Até a Idade Média, quando floresceu o Renascentismo, a natureza era temida como manifestação da onipotência – ora dos deuses, ora dos demônios. Para dominar a natureza e livrar o homem do peso do feitiço, era preciso conhecer as relações de causa/efeito, era preciso desmistificar. “O desenfeitiçamento do mundo é a erradicação do animismo”, afirmam Adorno e Horkheimer”(Max Horkheimer e Adorno, op.cit.).
      Conhecidas as causas dos fenômenos naturais, a própria natureza e suas estruturas ‘‘opressivas”  para o ser humano podiam ser dominadas, manipuladas. Esse elemento nuclear do Iluminismo funcionaria como pedra de toque para a estruturação da ordem tecnocrática/mercadológica – dominada, a natureza poderia ser transformada em mercadoria.
      Mas por que a Ciência, símbolo importante da aventura cultural humana, é caracterizada por muitos pensadores como grande incentivadora, ou motora mesmo, da crise global? São sete razões centrais, apontadas por vários nomes do pensamento moderno e contemporâneo:
(1)    O produtivismo – As relações sociais e com a natureza, na ordem tecnocrática, estão orientadas para o processo produtivo – seu corolário, o consumo. Esse conjunto de relações é fundado no racionalismo estrito. Tudo o que colabora para o processo produtivo é racional. As expressões humanas, sociais ou naturais que destoam das orientações funcionais, produtivistas, são irracionais, improdutivas. Por este prisma, as relações humanas e com a natureza tomam prioridades invertidas. Para a ordem tecnocrática, é racional depredar o meio ambiente para a obtenção do lucro. Ao mesmo tempo, é irracional defender uma forma de desenvolvimento que respeite o equilíbrio ambiental. Do mesmo modo, é “racional, explicável”, que centenas de milhões de pessoas sofram com a miséria, a desnutrição – afinal, muitas destas pessoas “não gostam de trabalhar, só querem moleza”. Também é racional que milhões de pessoas gastem de 3 a 4 horas de seus dias no transporte da casa para o trabalho e vice-versa.  O caráter impessoal, asséptico, da ordem tecno-industrial, foi denunciado com todas as cores na obra de Kafka, em especial em O Processo e A Metamorfose.
(2)    O novo conceito de tempo –  O pensamento tecnocrático operou uma mudança significativa no conceito de tempo. E talvez pior: com o enraizamento da sociedade tecnocrática, as pessoas humanas passaram a se preocupar com o tempo, como  que farão amanhã ou no futuro. As sociedades primitivas, nota Octávio Paz, em Os Filhos do Barro, viviam do passado, recuperando nos ritos a aurora da criação (1). Já o Cristianismo escolheu a eternidade como o tempo perfeito. A partir do Renascimento, o tempo ideal é o futuro –toda a sociedade moderna foi erguida em função de promessas, os prazeres de hoje foram adiados para o amanhã. Na ordem tecnocrática, o tempo passou a ser medido como qualquer outro fenômeno físico ou químico ou biológico. Não por coincidência, os instrumentos de se medir o tempo foram aprimorados no bojo do processo de estabelecimento da sociedade tecnocrática. A agulha de minutos foi inventada apenas no final do século 17, e a de segundos apareceu somente no século 18, no contexto de florescimento da Dupla Revolução, a Industrial e a Francesa. Vale lembrar que a idéia de medir o tempo se consolida com a contribuição do Cristianismo – com o badalar dos sinos da rede de monastérios que se espalha pelo território europeu. Em outras palavras, o tempo foi transformado na ordem tecnocrática em mais uma mercadoria. “Tempo é dinheiro” – este é um dos slogans mais conhecidos  da civilização tecnocrática, muito associado à idéia de produtivismo.
(3) A desespiritualização –  O excessivo racionalismo científico contribuiu para a desespiritualização da vida, para o desencantamento do mundo. “El universo que nos rodea es el universo de los colores, sonidos y olores; todo eso desaparece frente a los aparatos Del científico, como una formidable fantasmagoria” (Ernesto Sabato, Uno y el Universo, 1945, in Obra Completa, Editora Espasa Calpe Argentina/Seix Barral, Buenos Aires, 1995, página 29). O humanismo renascentista foi um dos grandes momentos da luta humana pela liberdade – luta própria da condição humana. Até aquele momento, as instituições religiosas estiveram ao lado dos poderes que massacravam os seres humanos. A Reforma Protestante, nascida no ventre do humanismo renascentista, foi um duro golpe no poder da Igreja Católica, muito embora o protestantismo tenha contribuído para o estabelecimento do capitalismo. Depois, a utilização da “vontade divina” como fonte de poder foi definitivamente fulminada na ordem industrial-tecnológica, embora muitos governantes ainda falem em nome de Deus quanto cometem seus assassinatos, pequenos ou de massa. “Deus está morto”, sentenciou Dostoievsky. Com a morte de Deus, o homem moderno rompeu um de seus vínculos primários de que fala Erich Fromm –o vínculo com a Igreja, a quem o homem medieval aderira para resolver seu processo de individuação, de separação da mãe – antes ele estava ligado diretamente à Mãe Terra, à natureza. O homem moderno tornou-se livre da idéia de ‘deus” que tanto o oprimia. No entanto, para equacionar a tendência de retorno aos vínculos primários, aderiu à estrutura opressiva da ordem tecnocrática. Ele aceitou integrar o conjunto funcional, “racional”. Os valores espirituais são condenados pela ordem tecnocrática – e até o Cristianismo foi vítima, apesar de ter contribuído, com o Antropocentrismo, para fortalecer essa mesma ordem. Esse processo foi sentido até no campo da cultura clássica, que perdeu, na sociedade tecnocrática, o seu poder de crítica, de contestação, como acentuou Walter Benjamin em A Obra de Arte na Época de sua Reprodutividade Técnica – ele acentua como a sociedade de massas e seu aparato científico e tecnológico permitiu a “democratização” de produtos originalmente consumidos somente pela elite, mas tais produtos perderam o potencial crítico.
(4) A separação, a fragmentação da vida – Penso, logo existo. O pensamento é a condição da existência, segundo Descartes. O cartesianismo foi o grande salto para o reforço do paradigma científico, e uma de suas características é a separação, a fragmentação da vida. Cada substância, cada espécie, cada fenômeno  – tudo deve ser dividido para ser compreendido.  “… el análisis científico es deprimente: como los hombres que ingresan en una penitenciaría, las sensaciones se convierten en números. El verde de aquellos árboles que el aire menea ocupa uma zona Del espectro alredor de las 5000 unidades Angström; el manso ruído es captado por micrófonos y descompuesto en un conjunto de ondas caracterizadas cada una por un número; en cuanto al olvido del oro y del cetro, queda fuera de la jurisdicción del científico, porque no es susceptible de convertirse en matemática” (Ernesto Sabato, op.cit., página 29). O século 20, com a separação do átomo, gerando o grande monstro da energia nuclear, consagrou essa visão. Mas as pessoas, o mar, as flores, os animais, a terra são muito mais do que apenas conjunto de átomos de moléculas a serem conhecidos, dominados e transformados em mercadoria. Teilhard de Chardin, o padre francês marginalizado por sua posições consideradas heréticas, defendia a tese de que também as “coisas”, a matéria inanimada, detêm de modo latente, em seu interior, um “espírito” – em suma, são portadores de vida. Para Chardin, não importa o tamanho do corpo. Todos os corpos apresentam uma complexidade em sua estrutura e, quanto mais complexo, maior o grau de sua interiorização, a sua “espiritualidade”. Assim, um simples micróbio teria um “espírito” maior do que um cometa, pois “sua complexidade faz dele um ser orgânico e sua interioridade se manifesta numa capacidade original de se alimentar, crescer e reproduzir-se”, no comentário de José Luiz Archanjo, em Teilhard de Chardin – MundoHomem e Deus (José Luiz Archanjo – org. -, Teilhard de Chardin, MundoHomem e Deus, Editora Cultrix, São Paulo, 1980). Em suma, a vida não pode ser aprisionada em números, equações químicas ou operações de computador. E nenhum ser vivo está acima de outro – todos são importantes na grande teia da vida. A separação, o isolamento, o individualismo foram facilitados pelo paradigma  científico cartesiano. E não só de átomos ou moléculas – mas dos seres humanos entre si e entre eles e a natureza.
(5) Cultura versus natura – Um dos efeitos do paradigma excessivamente científico foi a separação da cultura da natura, da natureza, que deve ser esquadrinhada, conhecida para ser dominada e transformada em mercadoria. Cultura seria, nessa visão, basicamente a reunião dos saberes científicos. As culturas “pré-científicas”, por exemplo as indígenas, seriam assim “menores”, “pré-históricas”. Mas qual seria a sociedade mais culta, a indígena, identificada com os fluxos da natureza, e por isso mais reverente com relação à vida, ou a sociedade tecnocrática, que destrói a natureza, a vida toda com sua lógica produtivista, racionalista ao extremo e consumista?
(6) Relativismo cultural – De um modo interligado, o paradigma científico e tecnológico, da forma como foi endeusado na sociedade tecnocrática, consolidou uma cultura como a dominante, excludente – a cultura de matriz européia e, no início do século 21, mais norteamericana do que tudo. É a cultura WASP – White, anglo-saxon e protestant – levada ao extremo. O inglês é o idioma a ser aprendido, imitado, assimilado. Os saberes nativos, típicos do povo, de qualquer povo, são excluídos. O que importa é o discurso racional, verticalizado, derivado das universidades.
(7) A política autoritária – A separação entre saber científico e popular é apropriada pela chamada classe política, que se autoproclama a única que pode efetivamente fazer política. Os políticos profissionais utilizam ingredientes do discurso científico para fazer valer a sua exclusividade, a sua reserva de mercado. O “falar bonito” de muitos políticos profissionais está associado a essa idéia. Alguns deles até inventam palavras, expressões ou modos próprios e peculiares de falar. Afinal, eles são os donos da palavra – política se faz essencialmente com palavras.
      As conseqüências ecológicas, políticas, sociais e culturais do cartesianismo excessivo são claras. Não se trata, óbvio, de repudiar tudo o que se refere à Ciência. A própria Ciência é responsável pelo maior conhecimento dos impactos negativos da ordem tecnocrática. O aquecimento global tornou-se um dos temas mais contundentes da agenda ecológica por causa das informações coletadas e difundidas por cientistas. E mais: a Ciência tem sido responsável por importantíssimas conquistas da humanidade, nos mais diversos ramos, da Medicina à Agricultura, das Comunicações à Economia.
      O que se critica é tornar o excessivo cientificismo como o paradigma único, e que seria neutro, quando na prática ele tem sido tudo menos neutro. Nesse sentido, é fundamental uma crítica consistente do paradigma cientificista, mas desde que não se revele totalmente irracional – o que seria outra forma de obscurantismo, usado às vezes por ditadores vários.
      Uma das mais contundentes críticas à sociedade tecnocrática foi pronunciada por Ernesto Sabato, o escritor argentino que, antes, foi cientista – trabalhou no legendário  Laboratório Curie, de Paris.
      Sabato, que fala da Civilização Tecnolátrica, aquela que idolatra a tecnologia, critica o que chama de fetichização da ciência: “… los siglos XVIII y XIX desencadenaron uma espécie particularmente peligrosa de dogmatismo: el científico” (Ernesto Sabato, op.cit. página 37).
Sociedade global interconectada: avanços da comunicação ajudam a
fragmentar ou a uma visão holística da realidade? 
      O escritor argentino, famoso por ter presidido a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), que apurou os crimes da ditadura militar em seu país, continua, ao lamentar como o cientificismo se tornou o paradigma da Civilização Tecnolátrica: “Era um acontecimiento previsible: la ciencia se ha hecho crecientemente poderosa y abstracta, es decir, misteriosa: para el ciudadano se ha convertido em uma espécie de magia, que respeta tanto más cuanto menos la comprende. Este nuevo esoterismo tiene por dignidades el Miedo y el Poder, y estas dos fuerzas engendran siempre las supersticiones” (Sabato, op.cit, página 38).
      A questão, enfim, não é negar a Ciência e a Tecnología, mas criticar a sua eleição como o paradigma único de mediação do real, de referência exclusiva para a produção, a cultura, a percepção espiritual e da natureza. Em resumo, torná-las, como diz Sabato, novos fetiches, novos mitos e superstições, exatamente o que o discurso científico e tecnológico diz combater.           
      E o espaço onde a crise do paradigma científico é mais evidente é o espaço local, as cidades. Elas se tornam campo privilegiado de reflexão sobre os impactos do paradigma cientificista e para a prática de nova abordagem.
A CRISE DAS CIDADES
      Metade da população mundial já mora nas cidades no início do século 21. É uma tendência clara a urbanização, projetando a multiplicação de desafios e riscos nos campos social, político, ecológico e econômico.       Mas por que o medo  da cidade grande, da metrópole, da megalópole, se as cidades, historicamente, são símbolos da libertação das estruturas tradicionalmente opressoras das oligarquias rurais através dos tempos, além de espaços de produção e troca cultural por excelência?      Ocorre que as cidades, no cenário da sociedade tecnocrática, consolidadas no século 21, adquiriram todos os aspectos negativos inerentes a essa sociedade, apesar dos esforços de arquitetos e urbanistas por tornar as cidades modernas mais agradáveis, de interação entre ser humano e meio ambiente, espaços de convivência dignos e solidários e não-violentos.      O que prevaleceu, porém, foi a cidade funcional, típica do produtivismo e fragmentação do cartesianismo. É a cidade dividida em zonas, cada uma destinada a um objetivo – a zona industrial,comercial, universitária e assim por diante. Uma das conseqüências é o enorme tempo que precisa ser percorrido entre a casa e o trabalho, o que significa perda de tempo e poluição atmosférica, por exemplo.
      A cidade funcional também está subdividida em guetos, dos quais a proliferação de condomínios é o signo máximo, no início do século 21 – são as novas muralhas, típicas da cidade medieval. É a consagração da separação, do isolamento, e não da cidade como espaço privilegiado de diálogo, troca intercultural e festa.      O predomínio do urbano sobre o rural, e da submissão dos recursos naturais às demandas de crescimento da cidade, é outro efeito deletério da urbanização típica da sociedade tecnocrática, consagrada no século 20. É a separação da cultura da natura, da submissão do espaço e dos recursos naturais à lógica produtivista, materialista e consumista.      Poluição, estresse, violência, pressa – estes são alguns dos sintomas básicos da cidade em crise do início do século 21, refletindo a crise global e espelhando a crise do paradigma científico e tecnológico in extremis. A pressa, o tempo é dinheiro, típicos da cidade grande, da metrópole, é a condenação da crítica – refletir sobre o que se faz se tornou um luxo. Tudo é feito de modo mecânico.
 
La Defense, em Paris: a metrópole humaniza ou mecaniza a vida?
 
      Os valores se inverteram. O que é natural não tem valor, o importante é o artificial. As árvores são incômodos, o importante é o asfalto, o concreto. Os rios foram sepultados, o morador da cidade perdeu o direito ao contato direto com a natureza. A desvalorização da vida é fatal, a violência o seu corolário.      Neste cenário proliferam os grandes planos, tradicionalmente concebidos pelos especialistas, pelos iluminados, pagos pelos políticos profissionais tornados governantes. São planos sem a riqueza do saber popular, trazem em si, embutidos, os valores do paradigma excessivamente cientificista.
      É nesse âmbito que as Agendas 21 Locais se transformam em instrumentos de planejamento participativo, pressupondo um grande pacto comunitário porque elaborado pela própria comunidade, apontando para a superação ou o enfrentamento dos desafios inerentes à crise das cidades, como reflexo da crise global e do paradigma científico e tecnológico.      As Agendas 21 Locais podem indicar um momento novo, de ligação entre o que está separado, de aproximação da cultura da natura, de protagonismo comunitário, de reapropriação do território como direito de todos, da vida toda, de seres humanos, dos animais, da flora e da biosfera como um todo.
      Mas para que isso aconteça, para que as Agendas 21 Locais se consolidem como esse mecanismo de transformação, no contexto da emergência da Nanocultura, são fundamentais as mudanças de paradigmas culturais muito fortes, o que pode ser exercitado pelo exercício do que eu chamaria de quatro pilares da nova cidade, a Ecocidade: a Ecopolítica, o Ecofeminismo, o Ecodesenvolvimento e o Ecopacifismo. Temas dos próximos capítulos.
 

CAPÍTULO II

ECOPOLÍTICA: A POLÍTICA COM AMOR

 
      Uma civilização ecológica – eco-socialista? –, no marco da Nanocultura, deve  ser o primado da cidadania e da participação política. Nas duas últimas décadas do século 20 e primeiros anos do século 21 o mundo passou por um período de enorme insatisfação com os rumos da política. Denúncias freqüentes de envolvimentos de políticos em corrupção e a própria estratégia de manutenção do poder orientaram a opinião pública no sentido de repudiar a ação política como algo sujo, indigno do ser humano.
      Aos olhos do cidadão médio, a classe política em geral passou a ser vista toda ela como corruptível. “É tudo a mesma coisa”, diz o senso comum, referindo-se aos membros da classe política.Mas se se deseja a construção de novo ideal civilizatório, a partir das Agendas 21 Locais como programas de participação coletiva na definição dos rumos de suas cidades, as futuras Ecocidades, é essencial o resgate do sentido nobre da política como arte de busca do bem comum. Via Ecopolítica do Amor.
      

ECOPOLÍTICA: CONTRA A CENTRALIZAÇÃO

 
      Na sociedade eco-socialista, a partir das Ecocidades, a atividade política deve estar determinada pelo signo da descentralização. Ecopolítica do Amor: cada um deve se sentir responsável pelo todo, a partir do momento em que sente ser possível influir nas decisões que afetam diretamente as suas vidas. A política de descentralização contradiz o conceito de política tradicional, e que tem orientado a ação dos governos através dos tempos, em especial após a Revolução Francesa e a formação dos Estados-Nação.
      Uma rápida pincelada sobre a visão da atividade política no curso da história ocidental é suficiente para confirmar o caráter centralista da ordem tecnocrática. O governo ideal na mente dos sábios gregos era exercido por uma minoria. Platão imaginava o governo ideal praticado pelos filósofos. Aristóteles procurou democratizar o conceito, ao assinalar que o homem é por natureza um “animal político”, na medida em que faz parte necessariamente de uma sociedade determinada.
      Ainda assim, Aristóteles não ampliou muito o direito à atividade política, pois até admitia a existência da escravidão em certos casos. A mulher, para Aristóteles, não estava igualmente destinada à política, devendo limitar seu raio de ação à esfera doméstica.
      A ação política como reserva de mercado de uma minoria continuou no Império Romano e na Idade Média, quando os reis foram investidos, pela Igreja, de um “poder divino” para governar. O poder divino dos reis começou a ser questionado no Renascimento, e um dos expoentes renascentistas – para muitos o pai da ciência política moderna – foi Nicolau Maquiavel.
      Para Maquiavel, o homem podia ter o destino em suas mãos, não era uma pessoa impotente nas mãos de Deus. Mas o conceito maquiavélico de política como atividade humana não foi estendido a todos os seres humanos – era o Príncipe que deveria orientar a atividade política. E, em política, para Maquiavel, os fins justificam os meios – em nome do “bem estar” do ser humano, atos desumanos poderiam e deveriam ser aplicados ao bel prazer do Príncipe. Não estaria nessa visão –muito aplicada através dos tempos pelos diversos formatos de Príncipe – a origem a origem da decadência e do descrédito do sentido da política como algo nobre, se exercido em nome de todos, e de modo ético e responsável?
      A Igreja não poderia passar incólume pelo Renascimento, e a Reforma protestante não tardou, liderada por Martim Lutero e João Calvino. Contudo, se a Reforma significou o questionamento do poder do papa, da hierarquia, não representou, em termos práticos, o questionamento do poder dos príncipes – muitos soberanos acabaram aderindo à Reforma, quando sentiram que os seus líderes não estavam questionando radicalmente o status quo.
      Ainda assim, sob a ressonância do Renascimento e da Reforma, o raio da ação política foi se expandindo, embora os donos do poder tenham sempre encontrado fórmulas para limita-la a um grupo reduzido. A tendência de concentração/expansão continuou no Iluminismo  e na fase das transformações mundiais processadas pela Dupla Revolução – a Revolução Industrial e a Revolução Francesa.
     

REVOLUÇÃO FRANCESA E MODERNIDADE

 
      Na Revolução Francesa, o conceito de cidadania recebeu um impulso expressivo. O homem e a mulher comuns tornaram-se agentes políticos de direito. Porém, novamente o poder se recompôs, e adequou o conceito de política e governo à aurora da nova ordem mundial – a ordem tecno-industrial.
      Com efeito, a Revolução Francesa criou o conceito moderno de Estado, que resultou em uma concentração ainda maior de poderes. Depois evoluiu o conceito de democracia eleitoral, a única forma legitimada de ação política. A política se reduz à ida do cidadão à urna, onde deposita o voto neste ou naquele candidato. É só. Claro que mesmo a democracia eleitoral demorou décadas para se firmar – só votavam inicialmente os proprietários, o direito de voto das mulheres data do princípio do século 20, analfabetos tiveram o direito de voto assegurado – por exemplo no Brasil – somente na década de 1980.
      A política na Era da Idade Mídia, transição dos séculos 20 e 21, foi orientada cada vez mais para a hegemonia da mídia eletrônica, notadamente da televisão. A época dos grandes comícios, que decidiam uma eleição, acabou – os comícios viraram showmícios, nos quais os candidatos pouco falam, quem se expressa é o cantor ou grupo do dia. Os novos líderes políticos vão para o estúdio da TV, se maquiam e respondem algumas perguntas de jornalistas ou representantes “do povo”.
      O resgate da atividade política para edificação de uma nova cultura, com base nas Ecocidades, tem esse enorme desafio midiático pela frente. De qualquer modo a nova forma de fazer política, a Ecopolítica amorosa, tem necessariamente a marca da descentralização.                   
        

A LUTA PELA DESCENTRALIZAÇÃO

 
      A luta pela ampliação da atividade política, contra a centralização, é antiga, e pode fornecer subsídios à construção da Ecopolítica. E talvez o caminho seja o de retorno às origens da humanidade. As sociedades primitivas eram descentralizadas, como lembrou George Woodcock, em artigo de 1972: Reflexões sobre a descentralização. Foi apenas quando o homem colocou a mão sobre a natureza, estabelecendo a atividade agrícola, que começou a haver a centralização. Nascia o princípio da propriedade privada e do patriarcado, contra o matriarcado reinante em várias sociedades primitivas – as sociedades em que a Deusa Mãe era predominante.
      Woodcock assinala no artigo que são poucas as sociedades descentralizadas remanescentes, embora advirta que, em sua opinião, elas podem estar perto do fim: os esquimós do Norte do Canadá, os indígenas australianos, nativos das regiões centrais de Papua-Nova Guiné. Alguns grupos indígenas brasileiros podem ser enquadrados nessa esfera.
      O autor lembra de outras experiências de descentralização através dos tempos, como as primeiras Cidades-Estado, ou Repúblicas Livres, da Europa Medieval, “que surgiram no início pela necessidade de proteção mútua numa época de desordem” (George Woodcock, Reflexões sobre a descentralização, in Os Grandes Escritos Anarquistas, L&PM Editores, Porto Alegre, 1981).      
      Estas cidades eram livres, acrescenta, “durante séculos, na Itália e na Alemanha, foram as sedes de todo o conhecimento e da arte européia, gozando de toda a liberdade que poderia existir no mundo daqueles tempos” (George Woodcock, op.cit).
      Outras comunas nasceram e floresceram na Suíça – algumas delas ainda mantêm um razoável grau de autonomia, no início do século 21. Mas a Revolução Francesa, que criou o conceito de Estado moderno, reforçou a política da centralização. Revolucionários como Jacques Roux protestaram contra essa tendência, clamando pela volta da idéia da comuna que floresceu no início da Revolução.
      No século 19, nas áreas da América do Norte ainda inexploradas, Woodcock nota que os seguidores de pensadores libertários como Fourier, Robert Owen e vários grupos cristãos “tentaram estabelecer comunidades independentes que pretendiam ser as células de um novo mundo fraternal” (George Woodcock op.cit).
      Dezenas de comunidades foram criadas. O movimento durou quase um século, mas sobreviveram apenas as comunidades religiosas “que tinham outros objetivos além da simples aplicação de teorias sociais” (George Woodcock, op.cit).
    
O CASO DAS COMUNIDADES RELIGIOSAS
 
      A resistência das comunidades religiosas fechadas permite a observação de que muitas experiências comunitárias de caráter revolucionário para sua época partiram de símbolos culturais e religiosos. Os cristãos primitivos, reunidos em pequenas comunidades, exerciam atividade política ao contestar o poder do Império Romano. Depois, a institucionalização do Cristianismo levaria à perseguição e marginalização dos grupos cristãos que chegaram a contestar a ordem dominante em sua época.
      Durante a Reforma protestante, o movimento anabatista na Alemanha – também de inspiração cristã protestante – representou outro momento de rebelião popular generalizada contra os poderes da época. Os próprios líderes da Reforma acabaram negando a legalidade do movimento anabatista e condenando seus líderes, como Tomas Munzer.
      As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), expressões da Igreja progressista na América Latina e que tiveram seu auge nas décadas de 1970 e 1980, foram igualmente células de contestação do poder opressor. E a ação política das Cebs não seguia nada mais do que os próprios preceitos dos Evangelhos, como no Magnificat:
      Derrubou dos seus tronos os poderosos
      e elevou os humildes.
      Encheu de bens os famintos
      e despediu vazios os ricos (Lc 1,52-53)
 
SOCIALISMO E ANARQUISMO
 
      As experiências de descentralização também integram a história do movimento socialista, com suas contradições características da condição humana. O movimento socialista, subsidiado teoricamente por Karl Marx e outros expoentes, no calor da Dupla Revolução, abriu nova fase na história da participação política.
      Para Marx, o motor da história é a luta de classes, a luta entre o proletariado e a classe dominante, a burguesia. Até aquele momento a ação política era limitada à classe dominante, e o socialismo resgatava a luta do proletariado, dos oprimidos, como a mais nobre manifestação da luta política.
      A transição entre o final do século 19 e início do século 20 também assistiu ao florescimento do anarquismo, identificado como a recusa de qualquer tipo de poder,muito embora não possa ser confundido com o caos total. Vários expoentes do anarquismo defenderam, isto sim, uma nova forma de encarar o poder, que não seria mais exercido por uma elite – todos tomariam parte desse poder.
      Como cada um teria o direito e o conseqüente dever de participar da política, chegaria o momento em que a necessidade de se ter um governo estaria abolida. Uma coordenação é claro que existiria, mas não poderia de forma alguma exercer suas prerrogativas de forma autoritária – a consulta popular seria atividade constante, não apenas com a ida às urnas nas eleições.
      Em outras palavras, a comunidade anarquista ideal seria absolutamente organizada, e não o reino do caos como o anarquismo costumou a ser qualificado e estigmatizado, à direita e à esquerda – os anarquistas foram massacrados fisicamente pelas forças da direita, mas ideológica e politicamente por grupos à esquerda, e essa circunstância foi fatal inclusive em termos da relação das sociedades em geral com a natureza.
 
 
Muro de Berlim, símbolo de “outro socialismo”


      Pela sua crítica radical à hierarquia social, o anarquismo é potencialmente muito mais crítico do que o socialismo marxista à hierarquia estabelecida na relação entre homem e mulher e homem e natureza. O patriarcalismo e o antropocentrismo, duas das características da sociedade tecnocrática, são antagônicas à essência do anarquismo.
      Se o anarquismo tivesse prevalecido ou, no mínimo, se igualado em influência no ascendente movimento operário mundial, entre final do século 19 e início do século 20, a luta pela igualdade das mulheres e pelo respeito à biosfera não demoraria tanto para ser impulsionada, o que ocorreu somente, com força, a partir dos mágicos anos 60.
      A construção de um novo marco civilizatório, a partir das Ecocidades como base e através da Ecopolítica do Amor, deve recuperar, então, o pensamento anarquista como importante fonte de reflexão.              
      A democracia popular característica do anarquismo foi observada, de alguma maneira, na própria Revolução Soviética de 1917. “Todo o poder aos sovietes”, era o lema da época. Contudo, a atividade política sob o regime comunista, no modelo burocratizado, terminou ficando novamente concentrada em um pequeno grupo, a elite do partido, repetindo a orientação da atividade política no capitalismo. O centralismo democrático foi a palavra de ordem no comunismo burocratizado durante muito tempo.
      É óbvio que nos diferentes países do “socialismo real” muitos avanços foram obtidos em termos de participação popular nas decisões. Podem ser citados os Comitês de Defesa da Revolução em Cuba e na Nicarágua. Com a Perestroika e a Glasnost na ex-União Soviética havia a perspectiva de ampliação dos canais de participação política sob o comunismo. Mas não houve tempo…
      Mesmo no âmbito do urbanismo a influência do anarquismo foi forte, na transição dos séculos 19 e 20, e a materialização em maior escala dessa influência talvez tivesse resultado em cidades menos artificiais e funcionais do que aquelas que “vingaram” na sociedade tecnocrática. Na avaliação de Peter Hall, em seu monumental Cidades do Amanhã:
      “É realmente surpreendente o fato de que muitas – não todas, de maneira alguma – das primitivas visões do movimento urbanístico tenham como origem o movimento anarquista que floresceu nas últimas décadas do século XIX e nos primeiros anos do século XX. Isso vale para (Ebenezer) Howard, para (Patrick) Geddes e para a Regional Planning Association of Americana, tanto quanto para os seus muitos derivados no continente europeu. (Não valeu, contudo, e quanto a isso não há qualquer dúvida, para Le Corbusier, que era um centralista autoritário, nem para a maioria dos componentes do Movimento City Beautiful, fiéis serviçais do capitalismo financeiro ou de ditadores totalitários.). A visão desses pioneiros anarquistas não era meramente a de uma forma construída alternativa, mas de um sociedade baseada na cooperação voluntária entre homens e mulheres, trabalhando e vivendo em pequenas comunidades autogeridas”. (Peter Hall, Cidades do Amanhã, Editora Perspectiva, São Paulo, 2002, página 4).
      O autor lamenta como a questão evoluiu: “Não apenas por sua forma física, mas também pelo espírito, essas comunidades constituíam, portanto, versões seculares da colônia puritana de Winthrop no Massachusetts: cidade em topo de colina. Quando, porém, chegou finalmente a hora de seus ideais traduzirem-se em tijolo e cimento, a ironia foi que – com freqüência até excessiva – a concretização do sonho ocorreu mediante a intervenção de burocracias estatais, o que para os sonhadores deve ter sido detestável”. (Peter Hall, op.cit., página 4)
      Hall cita como Ebenezer Howard (1850-1928), um dos sonhadores do urbanismo anarquista, deve muito a pensadores desse movimento: “… cada uma de suas idéias pode ser encontrada no passado e, com freqüência, repetida à exaustão: Ledoux, Owen, Pemberton, Buckingham e Kropotkin, todos projetaram cidades para populações limitadas, circundadas por cinturões verdes de terras cultivadas; More, Saint-Simon, Fourier, todos projetaram cidades como elementos de um complexo regional” (Peter Hall, op.cit., página 107)
      Alguns frutos urbanísticos foram gerados da influência anarquista, como a Cidade Jardim (exemplificada em projetos como de New Earswick, Letchworth, Hampstead, Welwyn Garden City e uma parte de Manchester, na Inglaterra) e o Planejamento Regional, estimulado sobretudo por Patrick Geddes (1854-1932). “De seus contatos com os geógrafos franceses na virada do século, Geddes absorvera o credo do comunismo anarquista, baseado em livres confederações de regiões autônomas” (Peter Hall, op.cit., página 161).
      O ideário de Geddes é muito marcado pela preocupação com os limites dos recursos naturais de uma área que seria urbanizada, bem de acordo com o que defende o ecologismo contemporâneo. “O planejamento deve começar, segundo Geddes, com o levantamento dos recursos de uma determinada região natural, das respostas que o homem dá a ela e das complexidades resultantes da paisagem cultural” (Peter Hall, op.cit., página 165)       
      E algo importantíssimo: Geddes se preocupava acima de tudo com as condições hídricas da região a ser urbanizada. Como dizia, em um de seus escritos, citado por Hall: “Tal levantamento de uma série