Em uma temporada com fortes concorrentes, “Fatima” foi o vencedor do César, o “Oscar francês” de 2016, em três categorias: melhor filme, roteiro e atriz revelação, para Zita Hanrot. Triste, moderno e realista, o filme destaca a distância cada vez maior entre a nova geração francesa dos filhos dos imigrantes africanos, que nasceram ali, e a de seus pais, muitos dos quais não falam francês. Mas, mais do isso, “Fatima” destaca a hora de separar o que vai e o que fica.
Um ano depois, o filme chega ao Brasil. Logo no primeiro dia de exibição, em uma tarde calorenta de uma quinta-feira de março, havia fila para a sessão da tarde no cinema cult de Botafogo, no Rio de Janeiro. Chamava atenção um grupo de amigas que falava (alto) sobre a atitude/aceitação das mulheres que usam lenço, o véu muçulmano; e os questionamentos eram vários. Muitas das mulheres ao redor prestavam atenção e algumas entraram na conversa.
Foi neste clima que “Fatima” começou e logo na primeira sequência, a protagonista, vivida por Soria Zeroual, argelina radicada na França, 44 anos, de véu, divorciada e que trabalha de faxineira para sustentar duas filhas, Nesrine (Zita Hanrot) e Souad (Kenza Noah Aïche), é vítima de preconceito ao tentar alugar um apartamento. “O que ela viu é que sou negra e você usa lenço…”, lamenta a filha depois que a corretora dá uma desculpa esfarrapada e não mostra o imóvel para elas.
De muitas maneiras, o usar ou não o véu é mostrado no filme para nos lembrar do choque cultural, do que é estranho aos olhos de quem não entende nem quer entender, em um mundo em que é impossível não ser notado quando se é diferente. E nós aqui, falando sobre o lenço como se fosse editorial de moda, ou vamos encarar a realidade?
Com direção do marroquino Philippe Faucon, “Fatima” guarda certa conexão com o filme brasileiro “Que Horas Ela Volta?” (2015), de Anna Muylaert, que também aborda a filha que rompe o ciclo cumprido por sua mãe e gerações de mulheres da família antes dela. Neste caso, Nesrine, que conseguiu passar adiante no processo de seleção para cursar Medicina, é esperança de um novo futuro para aquela pequena família.
A marroquina Fatima Elayoubi tinha 32 anos em 1983 quando deixou a família, em Rabat, no Marrocos, e foi morar em Paris. Em francês, sabia falar “sim” e “não”. Após o fim de um casamento de 16 anos, começou a escrever um livro sobre a sua trajetória, “Oração à Lua” (publicado em 2006). Depois, veio “Enfim, posso andar sozinha” (2011). É a partir de seus escritos que o Faucon elaborou o roteiro. A história é simples, minimalista até, com a câmera na mãe que tudo faz para dar uma vida melhor às filhas, mas que enfrenta grandes problemas de comunicabilidade, já que não domina o francês. Fatima passa o tempo livre escrevendo, em árabe, e o pouco do que é mostrado em seu diário é de uma ternura imensa.
Soria Zeroual é uma atriz não-profissional que emprestou seu rosto com muito talento para a mulher que persiste e enfrenta duas realidades, a da filha que será doutora e a da filha caçula, rebelde, que não se encaixa no que é esperado. Faz questão de manter o lenço, repete e respeita as regras de bom comportamento esperadas naquele universo tão particular entre mulheres africanas que vivem na França e não aprova quando a filha coloca uma camiseta sem mangas. Muitos conflitos afloram.
No condomínio onde vivem, Nasrine, a futura médica, é confrontada pelas mulheres vizinhas por não seguir o papel esperado, de cuidar da mãe, casar e ter filhos. A pressão é dupla, com os testes finais para a admissão na faculdade e as cobranças sociais. Mas Nesrine é inteligente demais para se abalar. Enquanto isso a filha mais nova, Souad, de 15 anos, sente vergonha da mãe e está cada vez mais rebelde. Confrontada, Fatima encara o desafio de se reaproximar da garota e pela primeira vez participa de uma reunião de pais na escola, mesmo sem dominar a língua francesa.
A falta de diálogo, literal, expõe a distância cultural e até faz pensar se existe alguma solução. Mas aí vem a maior das soluções, a solidariedade, no aparecimento de personagens que dão um respiro para que a gente possa pensar que ainda há amor ao próximo e que boas ações mudam vidas. O que vai acontecer depois?
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