Para os transeuntes apressados, rumo ou de volta ao trabalho e outros afazeres de “gente normal”, aquele trecho do centro velho da cidadona não passava de uma infestação por moradores de rua, entregues à apatia e à malandragem típica dos sobreviventes sociais. Estavam certos, de certo modo. Porém, não sabiam tudo.
Tampouco modificava a percepção os pedaços de diálogos eventualmente entreouvidos: afinal, aqueles desafortunados estavam sempre sob efeito de uma dieta maléfica à base de muita pinga batizada com metanol e algumas pedritas de crack.
Por isso, pode ter passado totalmente batido o papo esperto travado entre Fidid0 e Mestre Ranço. O primeiro era mais um sem-teto indistinguível naquela massa de desvalidos. Já Mestre Ranço demonstrava razoável capacidade de memória e, mentisse ou não, teria origem até nobre: pertencera a uma família de inclinação protestante histórica e chegara até a ser uma espécie de diácono; porém, depois que o uísque entrou demais em sua vida e a mulher o expulsou de casa, acabou na sarjeta. Porém, sem perder a religiosidade, como demonstrou a interpelação que fez a Fidido:
— Fidi, filhão, você pensa em deus?
— Tá viajando, Ranço? Como pode alguém tão fodido como nós ainda acreditar nessa coisa de deus?
— Seu problema é que você pensa no deus convencional, aceito pelas pessoas ditas “normais”, essas mesmas que passam por nós como se passassem por sacos de lixo…
— Ué, e existe outro tipo de deus?
— Deuses.
— ?
— Seguinte, filhão: nos últimos tempos tenho me dedicado a meditações teológicas e tive… uma iluminação.
— ?
— É, descobri que existe não um só deus, mas um panteão inteiro dedicado a proteger e guiar almas desamparadas como as do povo que vive nas ruas.
— Tá doido, manezão?
— Até fundei uma igreja. Quer conhecê-la?
Como não tinha nada mais importante para fazer — e também, por menos que quisesse negar, já nutria uma certa curiosidade pela maluquice do amigo, Fidido topou. Rindo e peidando alto.
* * *
A Igreja dos Deuses dos Desvalidos não passava de um trecho do calçadão no entorno da fonte d’água onde os moradores de rua tomavam eventuais banhos e mijavam sempre. Havia menos que meia dúzia de fiéis já ajoelhados defronte o banco de madeira que Mestre Ranço escalou e, do “púlpito”, começou a pregação, com voz tonitruante como se tivesse uma multidão à frente:
— Irmãos, logo seremos muitos os que adoram nossos verdadeiros salvadores! Abram suas almas e deixem que sejam banhadas pela luz intensa da extrema misericórd…
E foi aí que começou a confusão que ninguém explicou até agora.
* * *
Para a polícia e para o pessoal da assistência social da prefeitura, era muito difícil inferir qualquer resquício de credibilidade nos depoimentos daqueles mendigos fedorentos, muitos chapadaços ou em estado de brava ressaca.
Fidido foi o primeiro a depor:
— Mestre Ranço tava lá, dando o blá dele, quando uma explosão luminosa, mas silenciosa arregaçou o céu…
O próximo depoente tampouco ajudou muito:
— De repente, tinha um bando de caras voadores trocando porrada sobre nossas cabeças! Olha, que foi uma briga bem feia…
Os inquisidores se convenceram de que seria mais proveitoso ouvir o próprio Mestre Ranço, não obstante ele ser o mais delirante de todos:
— O que aconteceu foi muito óbvio: quando se sentiram finalmente reverenciados, os Deuses dos Desvalidos resolveram se anunciar aos fiéis em todo o seu esplendor.
Como nenhum dos investigadores conseguiu esboçar uma questão seguinte, o pregador prosseguiu, olhos vidrados:
— Mas aconteceu que na fase da transição interdimensional, houve algum incidente que motivou o conflito entre eles.
— Incidente? Que incidente? — inquiriu finalmente um policial.
— Bem, aí só posso supor… acho que Niither, que rege o vórtice de energia do Abismo, usou seu machado cósmico pra abrir a brecha interdimensional.
Só que Xuugarr, que exerce o protocolo sobre as intrusões no nível causal, não gostou da forma abrupta como a fenda fora aberta e entrou em combate com Niither. E eis que Haosofth, a força negra feminina, especializada em
trabalhos de paixão e morte, assumiu o lado de Niither. Daí, Noctus, divindade das noites frias, embora preso à terra, se alinhou com Xuugarr e seus aliados. Então, Niikalan, que…
— Já basta, senhor. — exclamaram, em quase uníssono, os atônitos perguntadores — Temos o suficiente.
— Os embates entre deuses costumam ser intensos, mesmo. — Mestre Ranço ainda teve tempo para acrescentar:
— Mas tudo acaba numa boa, pro bem dos congregados.
* * *
Depois do “já basta, senhor”, os investigadores houveram por bem encerrar aquela palhaçada encaminhando os “depoentes” para albergues públicos e manicômios — dos quais a maioria se evadiu, em questã0 de minutos.
Porém, as autoridades ainda não haviam conseguido explicar à mídia aquele quadrilátero totalmente calcinado e as árvores tombadas, raízes expostas, sem que houvesse ocorrido qualquer tempestade.
Enquanto isso, a Igreja dos Deuses dos Desvalidos só fazia crescer: sempre havia um culto em cada beco e pracinha da cidade.
Felizmente, o quiproquó divino da vez passada ainda não se repetiu…