Crédito: Ricardo Giaviti/creativecommons.org
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Uma outra conversa na Catedral

carlaozinho_0256_400x400Eu adorava os passeios dominicais por Campinas, levado pelas mãos carinhosas da tia Lídia. Até porque, no final de cada um, ela me regalava com pastéis do Voga e gibis comprados na Banca do Alemão. O daquela tarde, lembro-me bem, foi um exemplar em preto e branco que mixava personagens de Walt Disney com Pernalonga e outros mascotes corporacionais da Warner Brothers (crossovers não eram tão comuns nas HQs da época): edição rara, que guardo até hoje.

Entretanto, menino recém-chegado, o que me maravilhava mesmo eram os pontos históricos da “cidade grande”. Por isso, foi com muita animação que adentrei com ela a Catedral Metropolitana. Minhas inclinações religiosas já não eram lá muito acentuadas à época: o que me deixou boquiaberto foi a grandiosidade e suntuosidade do estilo neogótico do templo, inaugurado oficialmente em 1883 (e que até hoje passa por sucessivos restauros); com seus 4 mil m², o edifício é tido como o maior no mundo construído originalmente em taipa de pilão. Sem contar as ornamentações na fachada, como os medalhões com as datas comemorativas da diocese, os vitrais, as imagens sacras, as guirlandas e as estátuas dos quatro evangelistas e dos quatro anjos com suas trombetas do Apocalipse. Até os bebuns, que, mesmo então, já tiravam a “sesta” nas escadarias, me encantaram — “ovelhas desgarradas” e mesmo assim acolhidas? Ah, eu gostava de imaginar o melhor…

Crédito: York Minster/creativecommons.org
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Enquanto tia Lídia rezava ajoelhada — ela é católica fervorosa — comecei a me perder na contemplação do estupendo cimo da nave central, com seus, seguramente, perto de 20m de altura. Perninhas balouçando no corte do assento do banco de madeira, não me contive:

— Tia…

— O quê, querido? — paciente e bondosa, ela até topou dar uma pausa na comunicação com o divino.

— Tô aqui pensando… Deus deve ser um sujeito muito alto, ou então sabe voar, né?

— Comoéquié? Por quê?

— Ora, senão ele não seria capaz de decorar tão bonito lá em cima…

Ela deu uma risadinha abafada, porém logo me cortou:

— Querido, a titia tá rezando. Depois a gente fala disso, tá?

Meio envergonhado, optei por deixar a tia em paz com seus misteriosos murmúrios. Foi quando uma luminescência na fileira de bancos logo à minha frente atraiu meu olhar. O fenômeno se situava num ângulo que deveria ser também percebido pela tia, porém ela não pareceu notá-lo. Ou estava totalmente absorta em comunhão com seu salvador, ou eu estava alucinando (e isso bem antes de toda maconha, haxixe, chá de cogumelos, LSD e metanfetaminas que andei experimentando, vida afora).

A aparição se estabilizou na forma translúcida de um garotinho, de uns 12 anos (mais velho que eu, portanto); a roupa pobre e antiga coberta de poeira, ele se virou pra mim e me interpelou:

— Eu ouvi o que você falou pra tua tia, sobre Deus e os trabalhos na abóboda do forro da Catedral…

Mesmo assustado, reagi, num sussurro, pra não perturbar mais as preces da tia:

— S-sei… s-são maravilhosos, né não?

— São, sem dúvida. Mas você tá errado em pensar que Deus precisaria ser um gigante ou ter asas pra fazer isso.

— Uai, então como foi que Ele fez?

— Amiguinho: se você fosse capaz de enxergar de verdade, perceberia que as camadas de tinta contêm uma boa dose de sangue. Humano. Do meu, inclusive.

— ?

— Eu fui um dos operários que trabalharam nessa parte da obra; em 1865, houve um soterramento que matou quatro pessoas, três adultos.

— Mas você era só uma criança…

Crédito: Stewart Black/creativecommons.org
Crédito: Stewart Black/creativecommons.org

— Parece que na época, ninguém, nem a igreja, se preocupava muito com o emprego de mão de obra infantil.

A aparição se desvaneceu. Não vi como contar essa parte a tia Lídia. Me resignei a voltar pra casa e mergulhar na leitura do gibi diferentão.

Porém, tenho certeza de que a experiência marcou um tento decisivo em prol do meu agnosticismo: Deus não só não é gigante, como não tem asas. E o sangue humano corre fácil.

* * *

A BEM DA VERDADE:

A primeira vez que ouvi sobre a morte do menino na Catedral foi, realmente, em 1993, quando, repórter do Correio Popular, produzia uma matéria sobre lendas urbanas de Campinas. Minha fonte foi um amigo diácono (a Igreja Católica não gosta, obviamente, de se estender sobre o assunto, só se referindo a ele en passant em seus registros oficiais; nem as identidades das vítimas são reveladas). O diácono, naturalmente, não falou sobre a fantasmagoria; isso me foi relatado por beatos que entrevistei. Teve uma, inclusive, que jurou ter rezado junto com o fantasminha, “pra que ele alcançasse a luz”. Agora, a conversa na Catedral daquele dia com minha tia (cujo nome troquei, foi rigorosamente verdadeira. E ainda mantenho o gibi raro que ela comprou pra mim.)

Sobre Carlãozinho Lemes

Antes do jornalismo, meu sonho era ser... astronauta. Meu saudoso pai me broxou: “Pra isso, precisa seguir carreira militar”. Porém, nunca deixei de ir transmutando a sucata anárquica dos pesadelos em narrativas cambaleantes entre ficção científica, uma fantasia algo melancólica, humor insólito e a memória — essa tumba mal lacrada de maravilhas malditas. Assim, é o astronauta precocemente abortado quem proclama: rumo ao estranho e às entranhas!

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