Nunca foi exatamente raro que alguns olimpianos mais salientes adorassem dar umas escapadinhas para a Terra e aprontar pegadinhas com os incautos humanos. Ares fez isso diversas e sempre catastróficas vezes. Afrodite e Eros já preferiam a esportiva prática de soltar a franga no meio — muitas vezes literalmente “no meio” — dos pobres mortais (Curiosamente, Atena nunca se mostrou tentada a dar tais escapadinhas… ). Até que Zeus, soltando raios pelas ventas, resolveu coibir os excessos e passou a manter a galera divina em rédeas curtas. O que pode ter funcionado razoavelmente para o pessoal da casa, mas em se tratando de um titã… a coisa fica bem mais difícil.
É claro que eu não sabia de nada disso antes de esta história começar, propriamente. Findo mais um ato público contra ditadura militar, deixávamos o largo que era palco preferencial de protestos. Do auge do vigor dos meus 17 anos, cismei de bradar, para consumo da turma de estudantes secundaristas que marchavam comigo: “A nossa geração não vai envelhecer jamais!”
Os “hurras” dos companheiros ecoaram tão altos que quase não escutei a campainha anacrônica que o velhote montado na bicicleta caindo aos pedaços, parada junto à guia da calçada de uma das ruas circundantes do largo, acionava desesperadamente, com o óbvio propósito de chamar minha atenção.
— Que foi, vovô, quer falar comigo?
— Quero, Na verdade, já estamos nos falando, né?
Havia algo de incomum naquele velhinho: apesar dos longos cabelos e barba brancos, além da bicicleta decrépita, ele ostentava um físico e uma áurea admiráveis. Continuei:
— Quequicê qué?
— Não pude deixar de ouvir teu brado de guerra e, olha, o achei muito pretensioso e temerário…
Achei engraçado o lance do “brado de guerra”, porém retruquei com a grosseria típica de um adolescente afogado em adrenalina:
— Ora, foi só uma força de expressão… aliás, o que você tem a ver com isso?
— Você não sabe com quem está falando, né?
Aí, meio que perdi as estribeiras:
— Senhor enxerido, você acaba de fazer a pergunta nojenta que a gente ouve da boca desses gorilas que a gente acabou de encarar! Mas sim, tô até curioso: quem é vossa excelência?
— Cronos, a seu dispor.
— Cronos, o deus do tempo? Qualé!
— Na verdade, Cronos, o rei dos titãs. Ou, numa imagem que você só entenderá anos mais tarde, um olimpiano.
Eu era até razoável no conhecimento da mitologia grega; assim, apesar de cansado que só, resolvi esbanjar:
— Velhote, eu sei que é cascata pura, mas você tá tentando se apropriar de um personagem nada simpático…
— Ah, você se refere ao conjunto de besteiras que tua cultura estabeleceu como sendo minha história. Sim, é verdade que fui o mais jovem dos titãs, filho de Urano, o céu estrelado, e Gaia, a terra. Agora, aquele lance segundo o qual, sob sugestão de mamãe, castrei papai com um golpe de foice, e que, após me casar com minha irmã, a titânide Reia, e termos uma renca de filhos, os crónidas, eu os devorei assim que nasceram, pra não correr o risco de ser destronado do trono dos céus, ora, isso é pura baboseira maldosa.
— Mas, ao que consta, tua mulher te passou a perna e deu um jeito de salvar Zeus, que ela substituiu por uma pedra embrulhada em pano. Depois, Zeus se vingou, fazendo Cronos… ah, “o senhor”… engolir uma poção mágica que te fez vomitar os filhotes que havia devorado.
— É, é… por culpa daquela lacraia, Zeus tornou-se senhor do céu e divindade suprema da segunda geração de olimpianos.
— Também consta que Zeus baniu você e os outros titãs pro Tártaro. Mas, após uns tempos, os anistiou. Quer dizer que nada disso é verdade em tua lend… hã, história?
— Em parte é, em parte… mas há controvérsias.
— É mesmo? Então me diga o que deixei passar batido, pra que a gente não precise continuar este papo louco no meio da rua.
— Esqueceu de refletir que represento o tempo sobretudo quando este é visto em seu aspecto destrutivo, o tempo inexpugnável que rege os destinos e a tudo devora. — O velho não disse mais nada: brandiu uma imensa foice faiscante que não sei de onde ele sacou daquela bike arruinada. Riscou-a no ar, abrindo uma espécie de abertura tubular que era ao mesmo tempo luminosa e mergulhada em trevas.
Sem nem saber como, fui atraído para dentro daquele portal. Breves nauseantes segundos depois, vi-me no mesmo lugar de antes. Quer dizer, mais ou menos: a primeira diferença que percebi foi que aquelas espécies de marquises não existiam mais. Nisso, fiquei até contente: nunca me simpatizei mesmo com aquela excrescência arquitetônica do largo.
O senhorzinho sentado solitário num dos bancos, que lia um livro, indiferente às grossas cagadas de pombos que emplastavam suas roupas, logo chamou minha atenção. Aproximei-me:
— Se importa se eu sentar aqui, do teu lado?
— Claro que não. Melhor seria se você tivesse uma capa impermeável! Hehehe…
O lance com aquela figura era que ela me era diabolicamente familiar. Puxei mais papo:
— Por que aqui, tão sozinho?
— Ah… meus heróis morreram de overdose…
— ?
— O quê acontece com vocês, jovens de hoje? Não têm a menor memória do rock nacional?
Boiando na conversa, tentei avançar:
— Só preciso entender alguma coisa agora!
— Bem, você me lembra muito o pessoal da minha geração; talvez não seja tão alienado, afinal. Então, preste atenção: neste largo, lutamos muito contra a opressão. Porém, quando pensamos ter vencido, a maioria dos nossos ídolos nos traiu. E ficamos aqui, só dando comida aos pombos.
Triste pra caralho e meio instintivamente, deitei-me no colo do cara. E adormeci.
Quando acordei, deitado no banco, já era a manhã do outro dia. O senhorzinho discurseiro havia sumido. Defletindo os raios do Sol, as odiadas marquises tinham reaparecido. Os pombos competiam para ver quem cagava mais sobre minha figura estirada.
Meus companheiros mais sarristas andaram espalhando que eu havia tombado por causa de uma mistura de vinho Chapinha com maconha duvidosa. Porém, como diria um certo ciclista anciã0, havia controvérsias.