“A clínica chamara, eu deveria entregar a amostra para ser congelada no dia seguinte às dez da manhã em ponto.
Fui às oito, queria ter tempo de sobra para entregar o material.
Recebi as orientações de uma enfermeira que dizia que eu deveria lavar muito bem as mãos, que não usasse nenhum tipo de gel ou saliva, ouvia tudo de cabeça baixa como a um garoto ouvindo o sermão de uma mãe irritada com as suas travessuras, era vergonha, arrependimento e ansiedade.
Entrei na sala, segurando um potinho de tampa vermelha que ela me entregara. Diante de tantas tecnologias médicas, a coleta de sêmen é feita sem nenhum equipamento especial nem especialista, tudo é feito, MANUALMENTE, se é que vocês me entendem…
A sala não tinha mais que dois metros quadrados. Num canto uma cadeira azul; ao lado, uma mesinha com uma caixa de lenços e, a minha frente, um espelho, nada, além disso.
Segurei o pote firme e, enquanto via a imagem de um pobre miserável refletida ao espelho, iniciei a jornada para obter o material para a criogenia, mas me faltava inspiração para tal. Tentava me libertar das amarras do mundo adulto, e deixar a imaginação do adolescente que eu fora se despertar dentro de mim (qualquer detalhezinho era suficiente para passar horas trancado no banheiro). Mas nada… Era difícil encontrar qualquer inspiração em uma clínica médica cheia de gente andando e falando lá fora.
Meia hora se passou,, e eu na minha luta inglória, olhava para aquele pobre filho de deus dormindo como a um bebê, sem nenhum sinal de vida: “vamos!”.
Uma batida na porta. Era a enfermeira me alertando que tinha somente quinze minutos para providenciar a amostra. Então me vi na época de graduação, realizando uma prova final, tendo somente alguns minutos para entregá-la, sendo que nem havia terminado a primeira questão.
Sim, é um momento solitário de muita pressão…”
Em novembro deste ano, cientistas de diversos países (incluindo um pesquisador brasileiro) reportaram na revista “Human Reproduction Update” um estudo bastante perturbador: a contagem de esperma de homens caiu em quase 60% nos últimos 40 anos e segue caindo a uma taxa de 1,6% ao ano.
Pesquisadores mapearam mais de 185 estudos relacionados com concentração e número de esperma em homens entre os anos de 1973 a 2011. O mais perturbador é que ninguém sabe o porquê disso. Muitas hipóteses giram em torno do estilo de vida ou fatores ambientais. Muitos trabalhos lançam hipóteses como o uso de cuecas apertadas, saunas, bicicletas e até mesmo telefones celulares, mas são pesquisas isoladas e que nem de longe abrangem um grande número de pessoas. Esse trabalho foi realizado somente em países de primeiro mundo, e não se sabe se esses resultados se repetem ao redor do planeta.
Para se chegar a uma resposta, seria necessário um amplo estudo que levaria anos, e ninguém está disposto a financiar algo do tipo.
Essa queda na contagem de esperma me fez lembrar o livro do P.D. James “Children of men”. Ele fala sobre uma sociedade futurística onde as pessoas são incapazes de se reproduzirem. Por conta disso, nenhuma criança tem nascido pelos últimos 25 anos, e a humanidade está a ponto de entrar em extinção. No livro, as causas dessa infertilidade, que assolou os homens, são atribuídas a uma doença global.
Claro que, no mundo real, não chegaremos a este ponto, mas é fato que a concentração de esperma está se aproximando perigosamente de um baixo nível e pode trazer uma crise de infertilidade a muitos casais, hoje cerca de um casal entre 10 já sofre de problemas de fertilidade.
Esses resultados podem levar a uma mudança de ponto de vista nas questões de reprodução, pois problemas de fertilidade sempre foram atribuídos às mulheres e quase nunca aos homens, e, mesmo que o problema seja identificado nele, os tratamentos serão sempre realizados na mulher. O óvulo produzido por ela tem de ser fecundado, e a ela recaem todos os tratamentos de reprodução.
As mulheres já nascem com todos os seus óvulos e não os produzem mais. A cada ano que passa esse número tende a se reduzir, enquanto os homens seguem produzindo esperma durante toda a sua vida. Talvez daí comece a falsa ideia de que os problemas de fertilidade sejam de um ambiente feminino.
A principal preocupação de casais que decidem ter filhos mais tarde é sempre direcionada à mulher, pois sua taxa de óvulos irá caindo com a idade, chegando a zero na menopausa, e tudo gira em torno disso: quantidade e qualidade dos óvulos. A ela recai a pressão social sobre este timer biológico: “Muito velha para se tornar mãe”.
Mas, não seriam também os homens muito velhos para se tornarem pais?
No homem pousa uma falsa tranquilidade, pois como ele segue produzindo suas sementes durante toda a vida, ele não vê muitos problemas em adiar uma paternidade, mas claro que ele pensa em quantidade e se esquece da qualidade. Muitos problemas de saúde que o bebê possa ter também estão ligados a qualidade do sêmen e não somente ao óvulo, crianças nascidas de pais acima de 45 anos apresentam um risco maior de desenvolver transtornos psiquiátricos como esquizofrenia e autismo. A idade masculina também prejudica a sua fertilidade, estudos mostram que homens acima de 42 anos tem uma probabilidade de apenas 45% de engravidar sua parceira (considerando ela na idade ideal).
O esperma vem de uma mesma população de células tronco. Elas têm de se replicar sempre e sempre e, em algum momento, durante essas duplicações, as células podem sofrer mutações, afetando diretamente a qualidade do esperma.
Existem poucas alternativas para ajudar os homens que são inférteis, em mulheres temos técnicas de inseminação, cirurgias, injeções hormonais dentre outras, mas em termos de pesquisa masculina pouco se tem disponível e esses resultados trazem um alerta para tanto.
Casais que decidem tornar-se pais tardiamente, como minha esposa e eu, optam por congelar seu sêmen ou óvulos e, assim, garantir que, num momento oportuno, eles estarão saudáveis para realizar técnicas de fertilização assistida se uma gravidez natural se tornar tardia.
Quem quiser saber mais sobre o trabalho “Temporal trends in sperm count: a systematic review and meta-regression analysis” ele pode ser encontrado no site da editora da Universidade de Oxford.
https://academic.oup.com/humupd/article/23/6/646/4035689
Segue o trailer do filme adaptado do livro de PD James, no Brasil conhecido como “Filhos da esperança” que fala da crise de fertilidade que assolou o mundo.