E se a agricultura fosse destruída, onde encontrar sementes? (Foto Divulgação)
E se a agricultura fosse destruída, onde encontrar sementes? (Foto Divulgação)

Sementes: a alma da Terra

Andre_PB_400x400No filme interestelar de Christopher Nolan, o planeta Terra está ameaçado, nossas reservas estão se esgotando; e homens, animais ou plantas estão em risco, só existe salvação se a humanidade conseguir colonizar outro planeta. No filme, não sabemos bem a causa desse desastre, mas somos apresentados sutilmente a alguns deles, um é sobre uma espécie de praga que está dizimando as plantações e, consequentemente, a comida do planeta; ali o milho já não produz como se produzia e está, pouco a pouco, definhando. Doente e fraco ele caminha para a sua extinção.

Não estou bem certo se é possível que, de repente, uma super praga aparecesse e dizimasse nossas plantações ou algo que destruísse toda a fonte de alimentos do planeta. Hoje as pesquisas em torno da agricultura estão bastante avançadas e seriam capazes de detectar com uma precisão incrível qualquer ameaça. Isto, apesar de a história já ter mostrado que, em muitos momentos, a agricultura de um país já fora ameaçada por diversas vezes. Guerras e disputas podem, sim, ocasionar perdas enormes ao fornecimento de alimentos, destruir plantações e extinguir sementes.

Infelizmente, isso aconteceu recentemente na Síria, pois anos de guerras civil fizeram com que o país ficasse escasso de sementes de seus alimentos mais comuns, como trigo, centeio e leguminosas, e isso gerou uma crise sem precedentes. Por sorte, por assim dizer, o país conseguiu realizar um backup de suas sementes perdidas e conseguiu recuperar essas espécies vegetais.

O planeta Terra é um organismo absurdamente incrível, ele é o corpo, mas são as sementes a sua alma.

O homem aprendeu a cultivar, aprendeu a reconhecer plantas como fonte de alimentos e a melhorá-los. Por milhares de anos, cruzamos espécies vegetais para obter as melhores plantas e com elas as melhores sementes, estas que serão usadas para uma futura plantação. Foi assim que surgiu o milho, o trigo, o arroz e tantos outros alimentos que fazem parte de nossa vida.

Para que se tenha uma ideia, três espécies de plantas correspondem a mais de 60% de todo alimento consumido no mundo: o trigo, o milho e o arroz, plantas estas que foram domesticadas na aurora do desenvolvimento agrícola entre 9.500 a 3.500 a.C. e que ainda hoje utilizamos. Essas sementes foram selecionadas e melhoradas pouco a pouco pelas civilizações e hoje elas são a base alimentar do planeta inteiro. Mas, e se a agricultura fosse destruída e fosse necessário repopular o planeta novamente com alimentos, onde encontrar sementes?

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O Cofre Global de Sementes de Svalbard possui uma escultura de luz feita pelo artista norueguês Dyveke Sanne. Composta por triângulos de aço reflexivel, espelhos, prismas e luzes de fibra óptica, a arte permite que o cofre seja visto de perto ou de longe em diferentes momentos do dia e do ano. Para o artista, a instalação representa a diversidade e a vida dentro do cofre, refletindo-a no mundo. (Fotos https://www.seedvault.no)
O Cofre Global de Sementes de Svalbard possui uma escultura de luz feita pelo artista norueguês Dyveke Sanne. Composta por triângulos de aço reflexivel, espelhos, prismas e luzes de fibra óptica, a arte permite que o cofre seja visto de perto ou de longe em diferentes momentos do dia e do ano. Para o artista, a instalação representa a diversidade e a vida dentro do cofre, refletindo-a no mundo. (Fotos https://www.seedvault.no)

Por sorte, muitos países possuem os chamados bancos de germoplasma.

Os bancos de germoplasma são lugares destinados a conservar o patrimônio genético das plantas, sob a forma de sementes ou outra forma, como o DNA ou tecidos vegetais. O banco de germoplasma é um local de conservação “segurocontra a extinção das espécies no seu habitat. Seria uma espécie de HD externo onde você salvaria todos os seus arquivos e se, por algum motivo, você os perdesse, poderia facilmente recuperá-los. Você seria capaz de reconhecer a importância desses bancos de sementes para o mundo?

Um dos bancos de sementes mais conhecidos é o Svalbard Global Seed Vault, algo como Cofre Global de Sementes de Svalbard. Ele foi aberto em 2008 e está localizado na ilha norueguesa de Spitsbergen, no arquipélago de Svalbard, a cerca de 1.300 km do Polo Norte.

A área de armazenamento de sementes está localizada a mais de 100 metros no interior da montanha, sob camadas de rocha que variam entre 40 e 60 metros de espessura. Alem da montanha, o grande cofre tem um sistema de resfriamento adicional, para deixar a temperatura de armazenamento de sementes em -18°C. A instalação para armazenamento de sementes consiste em três salas e cada uma delas pode acomodar cerca de 1,5 milhão de amostras de sementes, dando ao cofre de Svalbard uma capacidade total para armazenar 4,5 milhões de espécies. Hoje as amostras estão chegando a mais de um bilhão de amostras de sementes e tudo ali é salvo em duplicatas.

Embora a imprensa sempre enfatize a sua possível utilidade no caso de uma grande catástrofe regional ou global, ele está sendo utilizado com mais frequência quando alguns bancos de germoplasma ao redor do mundo perdem amostras devido à má administração, acidentes, falhas de equipamento, cortes de financiamento e desastres naturais. Esses eventos ocorrem com certa regularidade. Guerra e conflitos civis têm uma história de destruição de alguns bancos de genes pelo mundo.

A Síria foi o país que fez a primeira retirada de sementes em 2015 para repor seu banco perdido por anos de guerra civil. É bastante atordoante saber isso, mas sem esse banco, talvez o país estaria em uma situação ainda mais séria do que se encontra atualmente.

A salvação das sementes e os bancos de germoplasmas me fizeram lembrar de uma história, que fala de um homem que fora escolhido por um deus para construir um barco. Esse deus estava bastante decepcionado com a humanidade e pediu que o homem, após terminar o barco, salvasse ali um casal de cada espécie de animal, pois ele alagaria o mundo inteiro com água.

Não, não estou falando sobre o livro do Gênesis da bíblica cristã. O que vou falar é de uma lenda escrita muitos anos antes da arca de Noé.

Vou falar sobre Manu e o dilúvio, um mito indiano que pode ser encontrado no Mahabharata, escrito há mais de cinco mil anos.

Nessa história, além dos animais, o deus pediu a Manu que ele salvasse também as sementes do mundo. A meu ver, a preocupação com as sementes já era algo existente à época dessa história. Talvez a arca de Manu fora o primeiro banco de germoplasma do planeta.

Nas várias tradições hindus, Manu é o título concedido ao progenitor da humanidade, quem salvou a humanidade do grande dilúvio, depois de ser avisado pelo Matsya avatar (como um anjo) do deus Vishnu. 

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A Arca de Manu e Noé, duas representações de culturas distintas, mas todas convergindo para um mesmo ponto (Fotos: http://www.mysteryofindia.com/2014/12/similarities-noahs-ark-manus-boat.html)
A Arca de Manu (abaixo) e Noé (acima), duas representações de culturas distintas, mas todas convergindo para um mesmo ponto (Fotos: http://www.mysteryofindia.com/2014/12/similarities-noahs-ark-manus-boat.html)

De acordo com textos hindus, um dia, Manu estava lavando as mãos em um rio quando um pequeno peixe pediu para protegê-lo de peixes maiores.

Manu ficou com pena do peixe e o colocou em um pequeno pote, e ali Manu o alimentava. Com o passar do tempo, o peixe crescia cada vez mais, até que o rei Manu o colocou em um pote maior e depois o depositou em um poço. Mas, o peixe continuou crescendo e assim teve que ser transferido para um rio e finalmente para o oceano.

Foi então que o “anjo” Matsya, revelou-se e informou a Manu de um dilúvio destrutivo que viria muito em breve.

 

Ó homem de bom coração, você tem cuidado em seu coração, ouça agora. Logo o mundo será submerso por uma grande inundação e tudo irá perecer. Você deve construir uma arca forte e levar uma corda a bordo. Você também deve levar consigo os Sete Sábios, que existem desde o começo dos tempos, e sementes de todas as coisas e pares de cada animal. Quando você estiver pronto, eu virei até você como um peixe e eu terei chifres na minha cabeça. Não esqueça minhas palavras, sem mim você não pode escapar do dilúvio”.

 

Então Manu construiu a arca e pegou as sementes de todas as plantas e alimentos, os Sete Sábios e um par de cada animal, a chuva inundou o mundo, e a arca navegou nas águas agitadas. Logo ele viu o peixe com chifres e lançou uma ponta da corda e laçou seus chifres. Então o peixe começou a rebocar a arca através das ondas, o mundo inteiro estava coberto de água, e nada era visto, apenas a arca.

De acordo com o mito, o barco de Manu ficou encalhado após o dilúvio no topo das “Montanhas Malaia”. Acredita-se que essas montanhas estejam localizadas no norte da Índia, perto de Manali. A palavra “Manali” é considerada como o nome alterado de “Manu-Alaya”, que significa, literalmente, “a morada de Manu”.

Manu ficou por muito tempo no pico usando os alimentos mantidos dentro do barco. Eles retornaram à planície após a água ceder e iniciaram a nova civilização e, assim, vieram de Manu todos os homens, todo o conhecimento e toda a comida do mundo.

Manu salvara as sementes e ainda hoje as salvamos.

 

 

O Brasil possui o terceiro maior banco de germoplasma de soja do mundo com cerca de 35 mil amostras. Ele foi criado em 1976, e é mantido pela Embrapa Soja, em Londrina (PR). Um tempo atrás fiz uma visita a esse banco, e é bastante emocionante saber que ali estão guardadas variedades de soja de diversas partes, alem de espécies selvagens brasileiras.

 

 

 

Para maiores informações

 

O Cofre Global de Sementes de Svalbard disponibiliza uma página na internet https://www.seedvault.no . Ali é possível encontrar muitas informações, como todas as espécies ali protegidas, os países que doaram, muitos vídeos e assuntos.

 

Aqui é possivel encontrar diversas fotos do local:

https://www.flickr.com/photos/landbruks-_og_matdepartementet/sets/72157623004641656

 

E aqui para quem quiser fazer uma visita virtual

https://tour.croptrust.org/

 

 

Mais notícias:

  

https://www.wired.co.uk/article/svalbard-seed-bank-syria

 

https://uk.reuters.com/article/global-climatechange-hunger/moves-to-cut-emissions-could-cause-more-hunger-than-climate-change-study-idUKL4N1UR4YW

 

https://www.huffingtonpost.co.uk/entry/global-seed-vault-svalbard-syria_us_560152ebe4b00310edf87694?guccounter=1&guce_referrer_us=aHR0cHM6Ly9lbi53aWtpcGVkaWEub3JnLw&guce_referrer_cs=PqHKyfhKS3AaQH5m7ZXuSg

 

http://www.mysteryofindia.com/2014/12/similarities-noahs-ark-manus-boat.html

Sobre André Sarria

Os certificados e papéis dizem que eu sou cientista, mas prefiro ser mais um "escutador" da natureza do que cientista. A natureza fala e eu a traduzo em linguagem de gente. Nasci em Cajobi e trabalhei em Londres como Pesquisador no Rothamsted Research. Atualmente moro em Madrid onde sou Diretor de Pesquisa e Desenvolvimento em uma empresa Europeia de agricultura.

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