Por Daniela Prandi
Confesso que gostaria de ter visto “Roma”, novo filme do diretor mexicano Alfonso Cuarón, em uma sala de cinema. Imagino a sequência inicial, de três minutos, na tela grande, quando apenas o vaivém de um rodinho lava a garagem da casa onde trabalha Cleo (Yalitza Aparicio), a empregada e protagonista do filme que se tornou sensação pelos festivais mundo afora, que acaba de ganhar o Globo de Ouro na categoria estrangeiro e que chega ao Oscar como um dos favoritos. Mas não, nos novos tempos, são outras regras de mercado, e basta um clique para o filme passar na sua TV. Fazer o quê?
Os aviões também vão e vem no céu preto e branco de “Roma”. Jovens esquecidos pela sociedade treinam artes marciais para fins escusos, conflitos sociais batem à porta, a desigualdade nas relações entre homens e mulheres provoca desconforto, e as memórias de uma infância que inspiraram Cuarón, o mesmo diretor de “Gravidade”, que levou o Oscar em 2013, emocionam. Imagina tudo isso no escurinho do cinema? Mas, não. O jeito é se conformar, já que, por aqui, um filme como “Roma” não foi para a grade de programação das redes de cinema, tomada por super-heróis, comédias abobadas e afins.
“Roma” chamou atenção e saiu premiado do Festival de Veneza do ano passado. De lá pra cá, o neo-realismo que inspira o filme ambientado no passado recente do México, que mais parece os dias atuais, só ganhou visibilidade. Aclamado pela crítica, a história da empregada que se espreme em um quartinho dos fundos, ajuda a criar os filhos do patrão e, de vez em quando, pode até sentar no chão e ver um pouquinho de TV com a família, é contada entre silêncios. Na história que foi escrita, dirigida, fotograda e montada por Cuarón, e que, não por acaso, no Brasil ganhou comparações com “Que horas ela volta?”, de Anna Muylaert, são as sutilezas, o que não é dito, que provoca a emoção.
Cleo é de poucas palavras, algumas delas, no idioma mixteco, mas mantém o olhar atento. Por seus olhos vemos o fim do casamento dos patrões, a dureza de uma vida sem qualquer direito à esperança, a sujeira deixada cotidianamente pelo cão na garagem estreita onde o carrão da família é estacionado milimetricamente, a carência dos filhos por causa do pai ausente, a dor da patroa traída, o amolador de facas que assobia na rua, o desaparecimento do namorado, o grande dilema que é estar grávida e não saber o que fazer. Estreante, a atriz Yalitza Aparicio fala com os olhos, em uma interpretação que nos envolve. A jovem de origem mixteca, um dos grupos nativos do país, conseguiu tanto destaque que acabou na capa da revista Vogue México, com o título “Nasce uma Estrela”. Esta foi a primeira vez que a revista de moda colocou uma indígena na capa e no editorial de moda. A atriz de 26 anos veste peças da nova coleção da grife Dior, inspirada na cultura das escaramuzas, as tradicionais amazonas mexicanas.
Em “Roma”, a rotina da protagonista é mostrada sem pressa, mas com um sentimento de urgência, como se estivéssemos, todos, vendo a vida passar. Cuarón conta que criou o filme a partir de suas lembranças de infância e que precisou buscar a “verdadeira Cleo” para clarear suas memórias. São pequenos momentos que nos levam até uma tragédia, no episódio que ficou conhecido como o Massacre de Corpus Christi, ocorrido em 10 de junho de 1971. A manifestação estudantil naquele México linha-dura vai mudar os rumos da história de Cleo, e assistimos a tudo com um sentimento de impotência.
O filme é dedicado a “Libo”, como Cuarón e sua família chamavam Liboria Rodríguez, a mulher de origem indígena que começou a trabalhar com a família quando o diretor tinha 9 meses. Rodado no bairro onde nasceu, chamado Colonia Roma, uma região em que a classe alta mexicana se estabeleceu na primeira década do século 20 próximo do aeroporto internacional, o diretor abre o plano para mostrar aviões, pelos quais era fascinado quando criança, quando sonhava em se tornar piloto. Mas, além disso, há uma conotação simbólica. Cuarón diz que, ao colocar as aeronaves cruzando o céu do México, quis passar a ideia de que a vida é transitória e que as situações que os personagens atravessam podem mudar a qualquer momento. Sim, e como mudam.
Há, ainda, o cinema. Cleo vai ver filmes para escapar da realidade. E Cuarón, ao usar o “cinema dentro do cinema”, homenageia produções cinematográficas que o tornaram quem ele é. Em uma das cenas, as crianças vão com a empregada assistir a “Sem Rumo no Espaço” (1969), um dos filmes favoritos do diretor quando criança e que o inspirou a fazer “Gravidade”. É, para dizer o mínimo, uma bela ironia já que “Roma”, para a maioria dos cinéfilos, não está no cinema.