Por Daniela Prandi
Nas ruas de uma Beirute destruída, sobreviver é para os fortes. Zain (Zain Al Rafeea), um garoto que não sabe nem quantos anos tem, corre de um lado para o outro tentando escapar da violência do mundo adulto em “Cafarnaum”, filme da cineasta libanesa Nadine Labaki, de “Caramelo” (2007) e “E agora, para onde vamos?” (2011), que levou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes 2018 e agora está na corrida do Oscar na categoria estrangeiro. Filme de criança, às vezes, pode cair no sentimentalismo, mas aqui não é o caso. A história emociona, mas não há concessões.
Cafarnaum, o título do filme, além de ser o nome de uma cidade bíblica, hoje sítio arqueológico em Israel, onde acredita-se que Jesus tenha pregado, é sinônimo de caos. O filme começa com o pequeno Zain no tribunal, enfrentando o juiz. É réu, pois esfaqueou alguém, mas se transforma em acusador quando questiona a (ir)responsabilidade dos pais, que nem ao menos o registraram quando nasceu e que, por uma razão que saberemos mais tarde, o levaram a cometer o crime.
“O que você quer dos seus pais?”, pergunta o juiz. “Quero que eles parem de ter filhos”, grita Zain. O roteiro é engenhoso e a própria diretora faz o papel da advogada do seu protagonista, em uma história construída a partir de entrevistas em favelas e centros de detenção de menores no Líbano durante três anos. Ao final de cada conversa, Nadine Labaki perguntava se a criança estava feliz por estar viva. Na maioria das vezes, a resposta era “não”. Para nós, brasileiros “acostumados” a ver crianças passando fome nas ruas, tudo faz ainda mais sentido.
Aos poucos, a história de Zain é desenrolada e o que assistimos é desolador. Em uma família de pais violentos, as crianças dormem apinhadas enquanto, no quarto ao lado, o casal trata de encomendar mais filhos. Os pequenos trabalham sem parar, não vão à escola, cometem pequenos delitos e não há tempo para brincar. A vida é dura, falta comida, falta cuidado, falta amor.
Zain protege a irmã pré-adolescente, que tem sua primeira menstruação, mas a garota logo vai embora, negociada com um comerciante em busca de uma esposa que “desabrocha” em troca de algumas galinhas. Sem ter como reagir, vai viver na rua, longe da violência doméstica. Passa fome, dorme ao relento e faz o que pode para fugir dos adultos até que conhece uma refugiada africana (Yordanos Shifera) que o leva para casa; casa é maneira de dizer, na verdade um barraco entre os muitos tantos de uma favela como tão bem conhecemos no Brasil.
A africana é uma imigrante ilegal, que trabalha para dar sustento ao filho de 1 ano enquanto junta dinheiro para comprar documentos que a deixariam viver no Líbano. Naquele novo núcleo familiar, Zain ganha a função de cuidar do bebê enquanto a mulher emenda uma faxina atrás da outra. Mas, um dia, ela não volta e o protagonista vê-se, mais uma vez, sozinho na vida. Com um agravante: há uma criança que ainda não sabe andar que depende dele para sobreviver.
Zain conhece uma garota que vende flores no semáforo e descobre que, para os refugiados, há comida, leite e fraldas. Faz-se passar por sírio para poder retirar alimento para o bebê, enquanto o arrasta em um carrinho improvisado por cenários de violência, miséria e caos, sempre o caos. No cruzamento entre a pobreza doméstica e a crise humanitária, a diretora reúne todos os males naquelas ruas de Beirute enquanto acompanhamos o vaivém de Zain e seu “filho”, que, afinal, são crianças e ainda encontram tempo para alguma diversão. É tocante a cena em que, ao improvisar com um espelho, Zain consegue assistir a um desenho animado que passa na TV do vizinho.
Mas não vamos esquecer que a história está sendo contada em flashback e logo chegaremos ao momento de saber a razão de Zain estar preso. No tribunal estão os pais e também a africana que o acolheu. Aos poucos, entendemos. O desfecho deixa um gosto amargo e é impossível sair do cinema sem sentir o peso da responsabilidade desses nossos tempos. Que mundo é esse, um mundo onde adultos são incapazes de proteger suas (nossas) crianças?
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