Crédito: Photo Atelier/creativescommons.o
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Nunca mexa com a Loira do Banheiro

carlaozinho_0256_400x400A maioria dos alunos daquela tradicional escola pública nunca ouvira a tal lenda urbana (a ignorância quase sempre é uma dádiva). E, mesmo os nerds aficionados da série Supernatural preferiam ficar na miúda; afinal, todos ali compartilhavam uma urgência: manter em alta o movimento de ocupação de não menos que 600 estabelecimentos no país contra a medida provisória da reforma do ensino médio e a proposta de emenda constitucional que tenta impor um teto ridículo para os gastos públicos ao longo dos próximos 20 anos.

Porém, o problema foi que se acumularam relatos sobre a aparição do fantasma da Loira do Banheiro; tanto nos sanitários para meninos quanto para meninas. Com tal intensidade, que os líderes da ocupação se renderam à necessidade de averiguar o caso: afinal, não podiam se dar ao luxo de deixar que a opinião pública — já bastante inflamada pela mídia — encontrasse um novo argumento no fato de que a estudantada andava se aliviando em áreas inapropriadas do vetusto colégio; já abundavam as calúnias sobre depredações.

Por isso, recorreram ao rei dos nerds, um moleque que, além de ter ouvido histórias do pai quando este também fora estudante, tivera a preocupação de pesquisar. Ele começou, professoral:

— Galera, essa vipe é muito antiga, coisa de um século atrás, em muitos países. Ela já foi conhecida como Bloody Mary, “Maria Sangrenta”, mesmo, e não a cruel rainha da Escócia; e Bruxa do Espelho. Dizem que foi executada, seus olhos arrancados e deixada na frente de um espelho. Caso seu nome seja pronunciado três vezes em frente a um espelho, ela aparecerá pra alguém que tenha envolvimento com alguma morte e tenha mantido segredo, e arrancará seus olhos. Há outras versões, tão tenebrosas quanto, mas o que nos importa é que, no Brasil, a bagaça ganhou cores mais prosaicas: uma garota, que adorava matar aula, ao se esconder no banheiro de sua escola, escorregou, bateu a cabeça no vaso sanitário e morreu. Foram colocados tecos de algodão em suas narinas, boca e olhos, para impedir sangramentos post mortem e liberação de odores, que dão à loira uma aparência macabra.

Crédito: Paul Sableman/creativescommons.o
Crédito: Paul Sableman/creativescommons.o

A plateia estava tão magnetizada pelo relato que até se descuidou da vigilância e não percebeu que a Tropa de Choque da PM estava prestes a invadir pra desocupar o colégio na base da porrada.

— Segundo essa versão, — concluiu o narrador — ela é invocada num espelho de banheiro quando os incautos dão três descargas e a chamam também por três vezes pelo nome. Ah, ela não simplesmente mata quem a provocou, mas também começa a assombrar o banheiro do colégio onde fora invocada.

Bastou o ponto final na narrativa pra que os fragilizados degraus das escadarias do velho colégio rangessem sob o impacto dos coturnos agressivos. A galera temeu o pior, claro. Os gambés entraram distribuindo cacetadas e espirrando gás de pimenta a torto e a direito.

Entretanto, o que se viu em seguida foi surpreendente: policiais armados até o cacete, com capacetes e coletes à prova de balas, desabando escadas abaixo, soltando gritos de horror e alguns até fazendo o sinal da cruz desajeitadamente por sobre os capacetes de Robocop.

A princípio, a estudantada não entendeu porra alguma. Nas poucas entrevistas que a imprensa conseguiu fazer minutos depois, policiais ainda trêmulos contaram uma história fabulosa: ao revistarem os banheiros com o objetivo de desentocar alunos mocozados, teriam sido atacados com fúria pela aparição de uma menina loira, pele translúcida, com chumaços de algodão ensanguentados enfiados nos orifícios da cara. Um dos policiais cagões até esbanjou conhecimento nerd ao jurar ter visto o fantasma “escorrer” de dentro de um espelho; “igual qui nem naquele filme, O Grito, quando a fantasminha escorre de uma tela de TV”, comparou.

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Crédito: Jornalistas livres

Enquanto a mídia fazia o circo, os estudantes da ocupação lucraram com uma explicação mais satisfatória: a loira fantasma acabou se materializando no topo da escadaria e, cuspindo o algodão da boca, declarou:

— Acho que vocês querem e merecem um esclarecimento. Durante décadas, fui odiada e temida por gerações de estudantes, que me associaram com a morte ou coisa pior. Só que isso nunca foi minha intenção e eu me magoava muito. Tive que esperar muito tempo até ver uma manifestação estudantil tão justa como a de vocês. Por isso, dei um jeito de garantir que os brucutus da polícia molhassem as camas nesta noite. ‘Cês sabem: inimigos de meus amigos são meus inimigos.

Os jovens reagiram com uma prolongada salva de palmas.

— Cada vez que precisarem de outra mãozinha, é só seguir o ritual de invocação, agora sem medo de serem felizes. — finalizou a loira, esboçando um sorriso cúmplice que fez pingar sangue na madeira antiga da escada.

Cada estudante ali pensou: “inimiga dos meus inimigos é minha amiga”.

Sobre Carlãozinho Lemes

Antes do jornalismo, meu sonho era ser... astronauta. Meu saudoso pai me broxou: “Pra isso, precisa seguir carreira militar”. Porém, nunca deixei de ir transmutando a sucata anárquica dos pesadelos em narrativas cambaleantes entre ficção científica, uma fantasia algo melancólica, humor insólito e a memória — essa tumba mal lacrada de maravilhas malditas. Assim, é o astronauta precocemente abortado quem proclama: rumo ao estranho e às entranhas!

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2 comentários

  1. Daniela quevedo

    Adorei. Entre estranhas e entranhas continuamos, nos amparamos e ainda sobrevivemos…..