O filme é “Crônica da Demolição”, documentário de Eduardo Ades sobre a derrubada do Palácio Monroe, na Cinelândia, no Rio de Janeiro, durante a ditadura militar. A sala está incrivelmente lotada em um sábado à tarde e, com o sistema de comprar assento numerado, é sempre uma loteria. Desta vez, fiquei no meio de uma família que assim que o filme começou a filha adolescente passou a perguntar sobre cada questão que era colocada.
Enquanto o general Geisel e outros personagens no centro de uma demolição absurda, que ficou como um trauma, contada no documentário com muita inventividade, com toques de suspense para quem não sabia a história – como eu, a família no cinema, que era um grupo de umas seis ou sete pessoas, bem no meio da pequena sala do circuito alternativo do Rio de Janeiro, passou a conversar, trocar impressões sobre o que era mostrado, e a adolescente cada vez querendo saber mais.
Impressionante que ali, uma sala de 60 lugares, ninguém parecia reagir ao falatório que se instalou bem no meio da plateia. Na telona, historiadores, arquitetos e urbanistas se revezavam entre cenas da época para discutir como a demolição autoritária do Palácio Monroe, um “trambolho”, como diziam os modernistas na época, entre ele o arquiteto Lúcio Costa, para os quais o estilo eclético não tinha valor, se tornou uma peça da destruição sistemática do patrimônio histórico não só do Rio de Janeiro, mas de tantas outras cidades Brasil afora. “Preservar é um ato afetivo,” diz um dos arquitetos entrevistados.
Filho de arquitetos, o diretor Eduardo Ades ainda era garoto quando passou pela Cinelândia e sua mãe contou a história do Monroe, sede do Senado Federal até a transferência do governo para Brasília. No local, atualmente, há como uma cicatriz, na forma de uma praça e um chafariz – seco, sem água, para afastar os moradores de rua que vivem por ali. No subsolo do terreno se faz negócio, com um imenso estacionamento para receber o vaivém de carros.
Muito bem conduzido, o documentário reúne trechos de cine-reportagens e derruba, de uma vez por todas, a justificativa de que o Monroe foi demolido por causa do trajeto da primeira linha do metrô carioca, já que os túneis já estavam prontos quando o palacete recebeu seu veredicto. O Palácio Monroe foi construído no início do século passado para representar o Brasil na Exposição Universal em St. Louis, nos EUA, em 1904. Projetado pelo arquiteto e engenheiro militar coronel Francisco Marcelino de Sousa Aguiar, foi desmontado e trazido para o Rio em 1906.
Setenta anos depois, em 1976, foi demolido quando o presidente Ernesto Geisel aceitou os argumentos de que, além de não ser de “arquitetura pura”, o imóvel prejudicava o trânsito e, especialmente, era um empecilho à especulação imobiliária então efervescente no centro do Rio. No documentário, um arquiteto diz que o Palácio Monroe não era aceito pelas oligarquias porque era “’mestiço”, como, aliás, quase todos nós brasileiros.
Com a atenção dividida entre o interessante que estava sendo mostrado na telona e a enervante reunião familiar bem no meio da sala comecei a procurar outro lugar. Só as cadeiras da primeira fila estavam vazias. Era lá ou lá, com dor no pescoço depois incluída no ingresso. “Será que vocês não poderiam esperar para conversar depois? Vocês não são acostumados a vir ao cinema?”, perguntei, depois de arrumar coragem, para a mãe da adolescente, cujo comportamento piorava a cada momento, com uma série que questionamentos que seriam muito pertinentes para um debate pós-sessão, por exemplo.
A mulher me respondeu com rispidez, disse que frequentava o cinema semanalmente, e que era apenas a curiosidade da filha, uma criança. “E tem muito mais gente conversando, não somos só nós”, disse. Só pensei que fui muitas vezes naquela sala e, ainda bem, nunca tinha me encontrado com aquela família. Não sei se havia outras pessoas conversando porque o barulho que eles faziam era tão dominante que era impossível prestar atenção em qualquer outra coisa. Vi que não teria jeito, era hora de encarar a velha máxima “os incomodados que se mudem”.
Deixei aquela situação para trás e fui para a primeira fileira, tentando encaixar o corpo e o ângulo de visão para terminar o documentário. O som da música de Phillip Glass e de Villa Lobos na trilha sonora ajudaram. Terminou e sobrou uma sensação de tristeza, pela perda e pela construção de uma nova memória.
Na saída, ainda vi a mãe com a filha faladora contentes, rodeadas pela família. “Hora do hambúrguer”!?
Boa pedida.
TRAILER