A tripulação e a numerosa massa de passageiros estavam eufóricas, justificadamente: afinal, venceram a maior parte dos 1,4 mil anos-luz entre o mundo natal e o planeta alvo. A arca estava em órbita de um planetão gasoso e inóspito no limiar de um sistema solar mais jovem, coisa de 2 bilhões de anos, que o velho sol deles, mas que abrigava aquele mundinho tão adequado que, apesar de ser 40% menor e 5 vezes menos massivo do que o velho lar, é um corpo rochoso, dotado de atmosfera densa, com muita água. E, principalmente, habitado e administrado por uma espécie humanoide e suficientemente inteligente. Tudo favorável ao contato e ao acolhimento.
O povaréu da arca até se animou a entoar para os deuses cósmicos uma oração de agradecimento aos cientistas do mundo natal: afinal, a proeza só se concretizara após esforços seculares de gerações de especialistas em provar que era possível se deslocar além da velocidade da luz. bastava aproveitar a quase total flexibilidade e a ausência de massa significante do espaço: o espaço à frente da nave se contraía e o espaço atrás se expandia, enquanto a nave, mesmo, estaria dentro de uma… “concha distorcionária”. Lógico, tudo graças ao emprego de alta dosagem de energia negativa.
Lamentável que só concluíram a tecnologia necessária para o êxodo quando o velho lar já estava inapelavelmente condenado por pretéritas péssimas escolhas ambientais e militares (estas últimas, ainda mais remotas: hoje, eles eram pacifistas convictos).
Lado negativo: o que era para ser uma evacuação em massa se reduziu para menos que 1 milhão de almas desterradas em busca de um novo lar que as acolhesse.
Lado positivo: ficavam eliminadas as dificuldades previsíveis no aporte da população inteira de um planeta noutro, também densamente povoado. Assim, se trataria de se apresentar aos visitados como uma leva de refugiados que — e esse seria o grande trunfo — contribuiria muito para o desenvolvimento tecnológico dos anfitriões. Levavam, por exemplo, cura para o câncer e doenças do sistema imunológico, além de projetos para acelerar coisitas como viagens interestelares.
Mas o carnaval que bombava na antes triste arca foi obscurecido por uma comunicação urgente dos dirigentes do planeta de origem. É, por uma questão logística, ficou para trás e com expectativa de compor a segunda arca sobrevivencionista, um punhado de líderes. Assim que a imagem do Conselho de Notáveis se definiu no telão da arca, tripulantes e passageiros não conseguiram evitar um mal estar ao constatar que a decrepitude corroía severamente os tais “notáveis”; sim, realmente o tempo se esgotava irremediavelmente por lá…
“Desbravadores,” — meio que murmurou o sofrível Decano dos Notáveis na medida em que os acessos de tosse permitiam — “infelizmente teremos que abortar a operação; vocês serão submetidos ao mecanismo de freagem que, felizmente, tivemos a prudência de montar”.
Ante a generalizada cara de “ué?” que dominou a plateia, o moribundo Supremo complementou:
“Vocês sabem bem que desde que descobrimos esse exoplaneta, tão promissor em vários aspectos, sempre mantivemos um pé atrás, por causa da natureza historicamente beligerante dos humanoides daí, não obstante seus avanços civilizatórios: afinal, desde sempre eles vêm se engalfinhando em conflitos, sejam regionais ou até de alcance global; inclusive chegaram a empregar armas radiológicas em seus momentos mais inconsequentes. As motivações têm variado desde disputas por fronteiras a preconceitos de fundo étnicos ou religiosos”.
Já que a cara de “ué” se manteve na ansiosa plateia, o sofrido líder continuou: “Como não tínhamos o tempo a nosso favor, até decidimos arriscar o contato mesmo assim: afinal, pelo que planejamos, tudo deveria se resumir ao encontro de uma população planetária em torno de 7 bilhões de habitantes com um punhado inferior a 1 milhão de desterrados que pagariam muito bem pela hospedagem, em repasse de conhecimentos. E, pelas nossas observações, esse planeta acomodaria sem muitas dificuldades tal aporte de agregados, visto que ele ainda mantém porções pouco densamente povoadas; e nós não almejamos hospedagem de luxo, vocês sabem”.
A persistência das caras de “ué” obrigou o mandatário a concluir: “O problema agora, peregrinos, é que nos últimos anos detectamos que a beligerância dominante aí passou a se canalizar para uma onda intensa de intolerância de nações mais favorecidas contra imigrantes de áreas conflagradas por ditaduras impiedosas e regidas por uma inexplicável violência contra dissidentes e fugitivos em geral”.
Obviamente a fim de encurtar o papo, o telão se preencheu de reproduções de cenas impactantes. O show de horrores em time lapse arrancou murmúrios e até imprecações indignadas dos espectadores.
O que se seguiu, não poderia ser diferente, foi um silêncio torturado.
Quebrado, logo em seguida, pelo retorno do Decano dos Notáveis: “Bem, nem preciso insistir que se este povo é essencialmente beligerante ao ponto de não acolher nem membros de sua própria espécie, certamente não reagiria satisfatoriamente ao aporte de novos ocupantes, que seremos nós. Como vocês bem sabem, embora tenhamos tecnologia de guerra capaz de esmagar qualquer resistência, violência não frequenta mais nossos planos: ansiamos por uma convivência harmoniosa.”
As caras de “ué”, agora transmutadas em expressão de pura expectativa, provocaram o veredito final: “Por isso, a decisão deste conselho é postergar o contato até que essa tendência odiosa tenha amainado o suficiente”.
Uma única voz, entrecortada, se elevou da plateia patetificada:
— Mas, e enquanto isso, dure o quanto durar, o que faremos?
A voz do Decano já era um fio, mas com clara entonação de fim de papo: “Mantenham essa órbita e distância do planeta alvo. Até que diagnostiquemos que o período crítico ao menos arrefeceu. Na medida do possível, despacharemos naves robôs com suprimentos”.
A arca, a estrutura mesmo, parecia chorar, descobrindo de repente que naquele momento o cosmo estava mais escuro e triste do que habitualmente.
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