Penso que não exista mais nada a ser dito sobre o terrível acidente radioativo acontecido em Goiânia, que irá completar 30 anos neste mês de setembro. São dezenas de livros, artigos, revistas, documentários e filmes narrando e descrevendo em detalhes tudo o que ocorreu. O material é amplo, e em alguns minutos na frente de um computador já é possível saber tudo que aconteceu naquele fatídico domingo de 1987. Qualquer coisa que eu escrever aqui será tão e somente baseado em amplo material disponível a todos. A meu ver, é muito importante manter este tema aquecido na mente das pessoas e torná-lo um incômodo para aqueles que o desconhecem.
Quando o acidente aconteceu, eu me lembro de ter sentido certa dose de empolgação das pessoas ali: meu mundo infantil de faz de conta estava repleto de heróis, naves galácticas e armas a laser. Quando minha mãe me falou que um pó radioativo se espalhou em uma cidade de Goiás, isso me encheu de esperança, pois para mim era uma questão de dias para que começassem a aparecer pessoas com superpoderes radioativos.
Pelo lado mais miserável de minha esperança, houve, sim, muitos heróis, mas nenhum deles aprendeu a lançar teias e escalar paredes, seus poderes já estavam dentro de si mesmos e vieram à tona quando tudo aconteceu, uma super força para suportar o medo e o incerto. Alguns desses heróis sucumbiram e morreram, outros fracassaram e, com seu psicológico totalmente destruído, se tornaram alcoólatras, viciados e suicidas.
Em agosto, fui a Goiânia a trabalho. Sempre me interessei por esse acidente e, estando em Goiânia, seria uma chance única de saber mais a respeito, mas, infelizmente, não existe nenhum museu na cidade ou um memorial, apenas uma praça com o nome de uma das vítimas.
Sem querer, no entanto, acabei indo parar num dos pontos mais importantes desse acidente. Estava com alguns pesquisadores realizando um trabalho de campo num bairro de Goiânia no setor aeroporto e, em nossas andanças pelo bairro, uma colega de trabalho nos disse que era no bairro em que estávamos onde ocorrera o acidente. Ela me disse que a rua onde a cápsula, contendo o material radioativo, fora aberta estava a apenas duas quadras de onde nos encontrávamos; eu quis ir até lá e, em minutos, estávamos de frente à simbólica Rua 57.
A rua poderia ser confundida facilmente com qualquer outra de uma cidade qualquer, com casas simples, árvores, pessoas andando despreocupadas e cachorros latindo, mas ali tem um lote que não existe em nenhum outro lugar no mundo. O lote está completamente vazio, tem uma cobertura profunda de concreto, e alguns grafites relacionados ao acidente estão desenhados na parede ao fundo. Na frente, há uma estrutura de metal, era grande outdoor onde anunciava que ali em breve seria um memorial, e agora é apenas uma estrutura de ferro enferrujada.
Quando me aproximei para registrar algumas fotos, um senhor sorridente, de cabelos grisalhos, apareceu à frente (e talvez já acostumado com outras diversas visitas) nos perguntou se estávamos ali para realizar algumas medidas de radiação, mas minha amiga disse que éramos apenas turistas curiosos. Confesso que me senti um pouco envergonhado de estar ali, um intruso que pouco sabia sobre o que se passara, pois eu não era íntimo de nada, por isso me senti invadindo um local e contando uma história de alguém como se fosse minha.
O fato inegável, todavia, era que estávamos diante do local onde tudo começou.
Em setembro de 1987, aconteceu o acidente com o Césio-137 em Goiânia, e o desastre começou com a abertura de um aparelho de radioterapia abandonado onde funcionava um instituto de radioterapia. Dentro do aparelho havia uma cápsula de chumbo e ali outra cápsula contendo cloreto de césio 137. Essa cápsula fora aberta, e o pó radioativo se espalhou e acabou contaminando centenas de pessoas.
O Césio 137 é um isótopo radioativo do Césio (um metal alcalino). Ele se transforma no radioisótopo do elemento Bário com liberação de radiação gama. O Césio 137 da cápsula estava na forma de um sal bastante solúvel em água, e essa característica fez a contaminação se espalhar mais rapidamente e tornar o acidente muito mais sério.
No dia 13 de setembro, o acidente irá completar 30 anos, e é uma data que jamais deveria ser esquecida, pois ela joga com violência em nossa cara uma sucessão de despreparo e cenas absurdas e muito comoventes. Ninguém foi punido por conta disso. Seria, então, esse acidente uma fatalidade? Um acidente sem culpados?
De maneira nenhuma. O acidente foi um crime causado por irresponsabilidade, que causou a morte direta de quatro pessoas e mais uma centena de mortes indiretas.
Assim que o acidente veio à tona, a polícia foi convocada para ajudar a remover as pessoas envolvidas (que foram abrigadas no estádio olímpico de Goiânia). Os policiais não foram avisados e, por não usarem nenhuma proteção, foram também contaminados pela radiação. De imediato, eles não foram reconhecidos como vítimas do acidente por parte do governo.
No estádio olímpico, as pessoas eram então separadas em grupos, de acordo com o grau de contaminação, 22 delas estavam seriamente comprometidas com contaminação interna e, assim, foram internadas no Hospital Geral de Goiânia. Dessas, algumas foram enviadas ao Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro, incluindo-se as quatro vítimas fatais.
As que apresentavam contaminação externa foram internadas na Febem, onde eram submetidas ao tratamento de descontaminação, que envolvia dezenas de banhos diários com sabão de coco, vinagre e pedra pomes, e a situação ali não era das melhores. De acordo com Suzana Helou e Sebastião Benício da Costa Neto, organizadores do livro “Césio 137: consequências psicossociais do acidente de Goiânia”:
“Os prédios onde foram alojados os radioacidentados não eram hospitais, mas neles havia médicos; não eram prisões, mas havia policiais; os indivíduos eram cidadãos livres, mas não podiam transitar pela cidade. Muitas crianças foram separadas de seus pais e os habitantes viam naquelas crianças como ameaças.” A situação era bastante conflitante e por medo “Os radioacidentados albergados na Febem reagiam agressivamente contra as instalações porque estas também motivavam o medo, o desamparo, a discriminação e a perda. Depredavam o prédio e espalhavam fezes e urina pelas instalações, com o intuito de contaminar o ambiente. Entre eles eram frequentes os gritos, as crises de choro e os pedidos de socorro.”
Uma das primeiras vítimas a falecer foi uma garotinha de seis anos, que foi contaminada quando seu pai levou à casa deles um pouco do pó de césio 137. O pó brilhava no escuro com uma luz intensa azul que deixava a todos maravilhados, e a garotinha, após “brincar” com o pó, foi jantar e, sem lavar as mãos, acabou ingerindo material radioativo. Seu enterro foi marcado por violência por parte dos moradores da região, que viam naquele caixão de chumbo uma ameaça as suas vidas, pois eles tinham medo que o corpo da garotinha pudesse contaminar a todos.
A polícia foi chamada para conter a manifestação, as pessoas invadiram o cemitério e atiravam pedras e paus na intenção de impedir o enterro. Penso ser uma cena bastante perturbadora devo dizer. A manifestação foi, obviamente, causada pelo desconhecimento e pelas incertezas do acidente, que era intensificado ainda mais por uma imprensa sensacionalista, “estados de insegurança e ansiedade surgiam como manifestações diante da possibilidade de morte”.
Passados alguns anos, Suzana Helou descreve em seu livro que: “A dificuldade, por parte dos radioacidentados, de se adaptarem à nova vida após o acidente podia ser percebida pelos desajustes familiares e conflitos conjugais. O aumento no consumo de bebidas alcoólicas e a ideia de suicídio indicavam a permanência da depressão, motivada pelas perdas afetivas e sociais. Houve doze tentativas de suicídio, entre 1988 e 2005… Quatro anos após o acidente, a angústia dos pacientes voltava-se para as consequências da radiação sobre a saúde, a médio e longo prazos, já previstas: a formação de leucemia, linfomas, tumores da medula óssea e tumores sólidos. A convivência com essa possibilidade tem sido uma das fontes geradoras de tensão, a exemplo do acontecido com os sobreviventes do bombardeio em Hiroshima. Lifton (apud Kastenbaum; Aisenberg, 1983), utilizou o termo “grávidos da morte”, no sentido de ‘carregar a morte dentro de si’”.
Hoje, 30 anos após o acidente “dos catadores de papel aos médicos que prestaram os primeiros socorros aos radioacidentados, nenhuma das pessoas envolvidas com o acidente foi capaz de reconhecer a contaminação radioativa com a qual, em maior ou menor escala, conviveram durante os 16 longos dias anteriores à notificação. Foi flagrante o despreparo dos profissionais da equipe de saúde formada às pressas para atender a população diretamente atingida. A maioria deles, com raríssimas exceções, não dispunha de formação técnica especializada o suficiente para atuar em desastres ou acidentes de qualquer natureza, muito menos nos de natureza radioativa.”
Césio 137, “Consequências psicossociais do acidente de Goiânia” 2ª edição, Suzana Helou e Sebastião Benício da Costa Neto (organizadores). Editora UFG digital, 134 páginas.
Hoje vendo RJ tv anunciaram roubo de uma cápsula de um aparelho de Rx em ITAGUAÍ ISSO me fez lembrar DESSA tragédia Confesso que me preocupei e estou até agora ESPERO que essa cápsula não nos traga nenhuma tragédia
Nossa! Será que a história vai se repetir?
É meu caro amigo André, um triste episódio que ficará para a história. Mais revoltante ainda é ninguém ter sido responsabilizado e culpado pelo ato depois de tanto tempo. Lamentável !!!
Excelente. Eu e os meus alunos vamos ler e conversar sobre…
Obrigada.
Fico muito feliz em saber isso. Obrigado e um forte abraco