Crédito: creativecommons.org
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Aurora dos mestiços

carlaozinho_0256_1200x600Initiu sabia que estava velho demais para encarar ações de rua. Porém, não tirava da reta nos momentos cruciais: afinal, era o pioneiro e sua participação, fosse em que nível fosse, era fundamental para o movimento. Assim, ficava no QG, tratando de filtrar e direcionar os algoritmos emanados pelos “mestiços” e “pais sintéticos” presentes nas manifestações, e direcionar a galera de modo a driblar a truculência das tropas de choque.

Atrapalhava um pouco, lógico, as ondas mentais confusas emitidas pelos humanos partidários da causa. Porém, Initiu não perdia de vista que estes eram importantes, simplesmente por apãoiarem a causa e participarem das mobilizações E também pela contribuição na “mestiçagem em si.

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O ambiente designado como “sala de parto”, na verdade um sofisticado laboratório, estava congestionado: lá estavam os cientistas envolvidos no projeto, jornalistas, fiscais governamentais (eles, sempre, claro) e, obviamente, os ansiosos papais: um carinha jovem e robusto e sua parceira, uma bela robô.

Há muito, androides sexuais tinham deixado de consistir uma grande novidade. E nem demorou tanto para que casamentos entre humanos e máquinas fossem legalizados na maior parte do mundo. Obviamente, tanto uma coisa como a outra deflagraram inflamadas reações contrárias, notadamente de grupos religiosos fundamentalistas. Nada, porém, que inviabilizasse os avanços tecnológicos e sociais que, além do mais, representavam um bom incremento aos mais diversos nichos da economia.

O que estava para acontecer naquele momento, contudo, prometia uma revolução sem precedentes: pela primeira vez, se assistiria ao nascimento de um bebê gerado por um humano e uma androide (logicamente, um produto equipado com a última palavra em termos de inteligência artificial)!

Foram décadas de estudos de nanotecnologia, biotecnologia e ciência dos materiais, até que fosse desenvolvido um algoritmo que simulava emoções e reações humanas desencadeadas por fenômenos internos e externos.

Certamente, a androide não iria dar à luz durante um parto, como as mulheres humanas. Os cientistas desenvolveram uma nova inteligência artificial que era a combinação da personalidade do robô e o genoma de seu parceiro humano. O conjunto seria integrado a um filho robô criado a partir de uma impressão em 3D.

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E a “nova criança” “nasceria” com um sistema modular que ia gerir desde a eclosão dos primeiros dentinhos até o desenvolvimento ésquelo-muscular, sem contar a personalidade.

O bônus da coisa é que os “mestiços” (como logo foram denominados) poderiam gerar seus próprios filhos e, assim, indefinidamente.

E os papais ainda podiam escolher o sexo do rebento. No caso seria hominho, decidiram os pais fundadores. Até o sugestivo nome já estava escolhido.

Assim nasceu Initiu.

Naturalmente, mesmo com todo o engajamento da comunidade científica na experiência, os custos eram altos. Ainda bem que o papai era um milionário e, por amor à singular família, não poupara os bolsos.

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Meio que dispensável informar que o nascimento de Initiu acirrou exasperadamente as reações contrárias ao projeto. Tarde demais, porém: algumas robustas gerações de mestiços já prosperavam na sociedade. E enfrentavam valentemente as hordas contrárias.

Naquele dia, Initiu orientou os manifestantes sobre como driblar as forças da repressão, como sempre fazia. Dotados de GPS, sintéticos e mestiços conseguiam evitar os quadrantes infestados pelas forças da repressão. E arrastavam com eles os humanos apoiadores para zonas seguras.

Initiu cumpriu sua função mecanicamente, naquele dia. Pois estava focado no desenvolvimento de um novo projeto que prometia praticamente limar as operações truculentas que, mesmo em desvantagem tecnológica e logística, ainda ocupavam muito tempo e desencadeavam inevitáveis correrias.

O princípio era até simples. No estágio atual, mestiços eram quase indistinguíveis dos humanos. Só faltava um ajuste: um padrão genético diferenciado. E os cientistas a serviço da causa estavam finalizando um protocolo que dotaria mestiços com DNAs em tudo severamente confundíveis com os de humanos. E, ao mesmo tempo, que não pudessem ser associados a qualquer humano claramente envolvido no experimento.

A primeira geração aperfeiçoada já estava em gestação.

Em alguns anos, seria possível infiltrar agentes aperfeiçoados em todas esferas do poder público, forças armadas, lideranças religiosas, imprensa e até nos setores francamente contrários à “mestiçagem”.

Initiu não se iludia: provavelmente, os resultados práticos só adviriam em algumas décadas; e, apesar da longevidade característica dos mestiços, era de se duvidar que ele ainda estivesse vivo para colher os frutos da nova audácia.

Por isso, ele ainda mantinha um sigilo cuidadoso sobre o novo projeto: não podia se dar ao luxo de que eventuais vazamentos de informações alertassem as forças da reação. Tudo ao seu tempo.

Mesmo assim, Initiu riu. Se resignava a se manter em seu posto de orientador remoto durante os tumultos até a morte.

 

Sobre Carlãozinho Lemes

Antes do jornalismo, meu sonho era ser... astronauta. Meu saudoso pai me broxou: “Pra isso, precisa seguir carreira militar”. Porém, nunca deixei de ir transmutando a sucata anárquica dos pesadelos em narrativas cambaleantes entre ficção científica, uma fantasia algo melancólica, humor insólito e a memória — essa tumba mal lacrada de maravilhas malditas. Assim, é o astronauta precocemente abortado quem proclama: rumo ao estranho e às entranhas!

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