Durante minha temporada no Rio de Janeiro, entre 2016 e 2017, só vi a Praça Paris de uma distância “segura”. Até planejei visitar aquela relíquia do final da Belle Epoque carioca, uma praça no bairro da Glória construída aos moldes das praças parisienses, com grandes gramados, lago, chafariz e canteiros em composição simétrica que tanto encantou os visitantes da Cidade Maravilhosa desde sua inauguração, em 1929. Mas nas duas ocasiões em que me atrevi a passear pelo local fui dominada pelo medo diante de tantos relatos de assaltos e outras violências. Pois dias atrás, em uma curta viagem ao Rio, a Praça Paris voltou a chamar minha atenção, já que é ela quem batiza o novo filme da cineasta carioca Lúcia Murat.
“Praça Paris”, não por acaso, é um filme cujo tema é a paranoia da violência que nos atormenta, envenena nosso direito de ir e vir e que tem sido amplificada a cada dia pela cobertura da mídia tradicional, sempre disposta a nos afastar do Rio de Janeiro a qualquer preço (e não pergunte a razão). O filme é um claro exemplo de como as coisas funcionam – ou não – na cidade que um dia foi a ensolarada e sempre caótica capital do Brasil.
O roteiro, assinado pela diretora em parceria com o jovem escritor Raphael Montes, estreante no cinema, é centrado em duas mulheres de condições sociais, trajetórias de vida e cor de pele bem diferentes. A história começa algumas décadas atrás, quando a avó da terapeuta portuguesa Camila (Joana de Verona) toma uma atitude drástica após uma temporada no Brasil. É ela quem posa na antiga foto diante do chafariz da Praça Paris, em uma imagem que persegue a neta nos dias atuais.
A estrangeira trabalha no Centro de Terapia da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), localizado entre o morro da Providência, a favela mais antiga do Rio, e o lendário estádio do Maracanã, um lugar emblemático quando se tem em mente a disparidade social de uma cidade “purgatório da beleza e do caos” – como bem cantou Fernanda Abreu. E assim surge Glória (Grace Passô), negra, moradora do morro da Providência, que trabalha de ascensorista na universidade e será uma de suas pacientes em seu trabalho de pós-graduação sobre violência urbana.
Grace Passô, vale destacar, atriz de teatro e dramaturga, deslumbra em seu primeiro papel como protagonista, em atuação premiada no Festival do Rio 2017, e sua interpretação é tão marcante que deixa sua companheira portuguesa em segundo plano.
Nas primeiras sessões da terapia conhecemos a trágica trajetória de Glória, que sofreu abusos do pai após a mãe ter abandonado a família, e só contou com seu irmão Jonas (Alex Brasil) para sobreviver naquele ambiente desagregador. Mas, no presente, o irmão está preso e ela o visita com frequência. Durante a terapia fica cada vez mais evidente que a psicóloga da Europa não está preparada para o que vem pela frente. Aos poucos, os relatos da paciente, que incluem assassinato, relação com o tráfico, vingança e violência extrema, acabam por transformar a portuguesa, que adota uma postura reativa, preconceituosa até, que a leva a se tornar uma vítima indireta da violência que pretendia estudar – de longe. O cenário da história, muito atual, é durante o fracasso das UPPs, no segundo semestre de 2016, em plena ressaca dos Jogos Olímpicos.
O filme mexe com os nervos, segue em ritmo de suspense e o desfecho é dos mais aterradores. Dominada pelo medo, a psicóloga, que carrega muitas fragilidades pessoais, acaba por provocar situações inesperadas, injustas, movidas pela paranoia. Enquanto isso, nos assustamos realmente quando percebemos quem é realmente Glória.
Neste jogo de inversão, os temas caros da filmografia de Lúcia Murat, como a desigualdade, o racismo e o universo das mulheres, chegam para perturbar, chacoalhar corações e mentes, fazer pensar. “Praça Paris” é um filme necessário, que parece gritar: é possível ficar indiferente à violência que parece estar sempre à espreita, não só no Rio de Janeiro, mas em todo os lugares? Até quando?
Em tempo: durante quatro dias de passeios pelo Rio turístico não vi nenhum tipo de violência. O que assustou foram as fileiras de soldados das Forças Armadas “protegendo”… o quê mesmo?
Trailer
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