Todo mundo de Cantão só falava na rifa do padre. Tinha hora em que o zum-zum-zum era um inferno: “vai dar águia, vai dar zebra, vai dar cobra, vai dar vaca”…
Os palpites ganhavam volume quando os romeiros passavam em frente à Igreja do Rosário. O que corria na boca miúda era de que a intenção era sensibilizar os santos para quando as bolinhas da loteria rolassem. E como só eles, os santos, poderiam provar a tese, restava ao padre rezar para que a cidade não enlouquecesse de vez.
O padre só sabia que tinha inventado a loteria pra igreja, uma loteria como dessas encontradas em tudo que é esquina. Apenas uma rifa, uma loteria mais livre. O padre só queria isso, só isso. A intenção era, com o dinheiro arrecadado, pintar o prédio e, se desse, fazer outras reformas, reforminhas. Era um jeito diferente de levantar recursos para a igreja.
Até a rádio da cidade, a “Fala Cantão”, batizara a novidade como a ‘ primeira rifa do padre do mundo’, o que para os donos da rádio era uma propaganda brilhante. Para grande parte da comunidade da igreja, era uma notícia que esculachava com os seus princípios. O padre tentava se defender, dizia que era só um joguinho para dar nova cara para a igreja.
Sabia também que a loteria era formada por bilhetes numerados. Só depois lhe contaram que cada grupo de quatro números identificava um bicho passou a entender a gritaria. Mas nunca tivera interesse em saber de vaca, de zebra, de bicho nenhum.
O padre era de Cantão, mas a história da rifa correu a região, o que indicava que 12 cidades estavam de olho no sorteio, perto de 60 mil pessoas. Para um Brasil, cujas estimativas indicavam uma população próxima a 70 milhões de habitantes, não era pouca coisa.
Estava em jogo naquele início dos anos 1960 um fusca zero quilômetro, carro que faria qualquer mulher agarrar-se ao para-choque da engenhoca e deixar-se arrastar país afora.
Perto do Fusca, só a lambreta, que mostrara a cara alguns anos antes, fora capaz de tanto furor. A lambreta tinha lá o seu charme. Começava pelos óculos, que não eram da lambreta, mas dos personagens que viajavam no veículo de duas rodas pelas ruas de pedra acostumadas com bondes e carroças – o homem na frente e a mulher na garupa.
Sim, naqueles anos 60, fora a lambreta, existiam outras duas coisas que fariam uma mulher se estrebuchar mundo afora pendurada no para choque de um fusca. O “mundo afora”, que viajava nas guitarras dos Beatles e Rolling Stones, e o próprio fusca, carrinho que se mostrava gigante naquele Brasil que se metia a rodar pela estrada de Santos. Era o Brasil do presidente JK, que começou a tirar o país dos trilhos das ferrovias e a levá-lo para as rodovias. O sonho estava à disposição.
Naquele mundo da borracha, Anacleto viu o futuro brilhar na sua frente quando o vendedor de bilhetes anunciou que estava ali, em suas mãos, no último dia da rifa do padre, em frente à Igreja do Rosário, o derradeiro bilhete que faria o sortudo abraçar o mundo das quatro rodas.
Anacleto conta a história nos mínimos detalhes, como se o fusca branco e as bolinhas do sorteio sempre estivessem em sua cabeceira. Os estudiosos da mente do homem dizem que certas pessoas podem algumas vezes engrandecer suas histórias, forma inconsciente de torná-las mais doces, mais coloridas, sem nunca perderem de vista a verdade, em volta da qual vinham os recheios.
Outras pessoas, de acordo com esses estudos, chutam o balde nessas reconstruções dos fatos, o que implicava em distorcer completamente os dados da história, como se eles tivessem se apagado da memória com o passar do tempo. Mas Anacleto não era desse tipo, era alguém incapaz de mentir. Ainda recorrendo aos estudiosos da mente, as características de Anacleto não se enquadravam no perfil dos mentirosos. Mentirinhas, sim; “mentironas”, não.
Anacleto conta que no dia anterior ao de se deparar com o vendedor de bilhetes, Ângela, sua noiva, recordou-se de sua promessa de que iria comprar o mais rápido possível uma blusa e um par de meias. Simples assim: uma blusa e um par de meias. Era o dinheiro do bilhete ou o dinheiro das roupas novas. O casamento estava em jogo.
Como mãe é mãe, time é time, loteria é loteria e, acima de tudo, santo é santo, todo mundo estava botando fé no número de Anacleto –e no seu, é claro. Mas na hora agá ele resolveu cair fora. Deu o lugar para o candidato seguinte, que comprou na hora o último bilhete da loteria do padre. Na manhã do dia seguinte seria o sorteio.
Anacleto não dormiu naquele dia. Só um pouquinho. Acordou e ligou o rádio para escutar as notícias de Cantão. E veio lá o que a loteria dizia. Saíra o resultado: igualzinho ao do bilhete que se recusara a comprar. O segundo sujeito da fila ganhara o Fusca.
A “Rádio de Cantão”, que no início polemizara sobre o assunto, ouvindo quem era a favor e quem era contra, quem enxergasse ali um pecado ou não do padre, apelou para o lado brilhante da propaganda como viam os donos da emissora. E no final pegou pra valer. Saiu com a manchete: O mistério da rifa do padre.
Como assim!! Saiu pra rua pra saber tintim por tintim daquela história. Saiu atrás do vendedor de bilhetes. Sumiu. Saiu atrás do comprador. Sumiu. Procurou o padre. Tinha viajado para Roma. E o Fusca? Também sumiu.
Apesar do mistério de Cantão, JK conseguiu emplacar um carrinho pequeno, mas forte, parrudo. Era um tanto feinho, mas até hoje circula de peito aberto pelo Brasil afora. Só restou quem discutisse o mistério: onde estariam os principais personagens dessa história? Aí estaria tudo resolvido.
Vida complicada! O diabo estava metido nisso. Que Deus abençoe Cantão.
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