Pra mim, o Natal não tem a importância mística a ele atribuído por muitos, simplesmente porque eu não tenho religião. Mas devo a essa incensada “data magna da cristandade” a primeira e, seguramente, uma das mais impactantes lições de tolerância da minha vida.
Lá no sul de Minas, onde nasci, — pensando bem, acho que em todas as regiões do país — as famílias católicas tratavam de iniciar a montagem do presépio com semanas de antecedência ao Natal, aquele lance de ir progredindo a marcha dos reizinhos magos e povoando a manjedoura de bichinhos fofos.
Tia Genoveva era professora aposentada, já velhinha, ainda que vistosamente empertigada como uma dama estampada num camafeu. Aristocraticamente culta, era ela que “tomava as lições” da filharada e sobrinhada, com o rigor que merecíamos.
Católica fervorosa, das hostes das Filhas de Maria, é lógico que a montagem do presépio da família era incumbência sagrada dela. Como mandava a tradição, criava uma linda maquete numa mesa grande de tampo de carvalho forrado de serragem, pra simular as ásperas areias do deserto onde Maria deu à luz.
A “animação” do cenário começava já no dia 1º de dezembro e, a cada dia, ela ia movendo a estrelinha, os reizinhos, os pastorzinhos, os carneirinhos e os bezerrinhos pra mais perto da manjedoura, num paciente e reverente xadrez.
Porém, nos últimos tempos, tia Genoveva já andava meio cegueta. E nós, os moleques, cada vez mais endiabrados. Uma combinação de fatores que levou à nossa pecaminosa sacanagem: a cada dia, um de nós acrescentava um bonequinho ao presépio; primeiro surgiu o gato mutante do He-Man, em seguida, um King Kong esmurrando o peito, um Godzilla ensandecido, e assim por diante. Até a Barbie decapitada da prima Ruth foi parar no presépio. Por que decapitada? Ora, por que a prima Ruth era uma mala e precisávamos fazer justiça, né?
Na véspera do Natal, parentada reunida, claro que um dos adultos tomou coragem e falou: “Tia Genoveva, esses diabinhos transformaram o presépio num circo dantesco!” E deitou a relatar a fauna exótica infiltrada em solo santo.
Foi quando tia Genoveva olhou pra gente com aquele olhar de fazer sabatina, que tanto temíamos. Porém, respondeu docemente: “Tudo bem, o menino Jesus acolhe todas as criaturas.”
Desde então, nutro um respeito absoluto por pessoas que sabem exercer sua religiosidade lastreada no que de mais nobre o gênero humano já edificou até agora.
Sensacional, Carlãozinho ! Adorei ! Bjs
Valeu, querida! Bjs