Para que o dia seja bom o costume é fazer um carinho no nariz da estátua do cão pastor ao lado do policial, uma das 76 imponentes peças de bronze da estação de metrô Ploschad Revolutsii, em Moscou. Locais e turistas se alternam entre rápidos afagos, selfies e pose para fotos em grupo, enquantos os trens chegam e saem. Recentemente, a tradição foi retratada no filme brasileiro “Vermelho Russo” e, naquele mesmo lugar, repetindo o afago no focinho do cachorro, foi impossível não me lembrar de Martha e Maria, as protagonistas do segundo filme do diretor carioca Charly Braun.
Moscou me recebe nos últimos dias de outubro com a primeira neve do fim de ano. São apenas alguns flocos, mas que já deixam branca a paisagem do Parque Gorki, a poucas quadras do hotel. O frio convida para um passeio pelas estações de metrô, os “palácios do povo”, uma das atrações turísticas. Mármore, candelabros, mosaicos, esculturas e decorações majestosas deslumbram no vai e vem das intermináveis escadas-rolantes. Nos vagões, apesar do wi-fi livre, muitos lêem. Com a proximidade da Copa do Mundo, já há informações em inglês, mas ainda assim dá para se perder.
Em “Vermelho Russo”, co-produção Brasil e Rússia, as brasileiras que se arriscam em um curso de teatro revelam um pouco da Moscou cotidiana no filme que mistura documentário com ficção e é com alguma dificuldade que se vê a fronteira entre um e outro. Martha Nowill e Maria Manoella são Martha e Maria, que estudam o método Stanislavski (Constantin Stanislavski, 1863-1938) e encaram duros ensaios da peça “Tio Vânia”, do dramaturgo Anton Tchecov, sob o comando do professor russo (Vladimir Poglazov). Vale lembrar que o filme, baseado no diário que a atriz Martha Nowill manteve durante sua temporada na Rússia, em 2009, foi filmado em 2014 mas, antes, teve trechos publicados na revista Piauí.
As atrizes brasileiras pegam o metrô, vão à Praça Vermelha, tomam vodca, enfrentam o frio e convivem com os locais, principalmente os funcionários e moradores do alojamento onde se hospedam, um tipo de asilo para artistas aposentados. Com aplicativos e telefones inteligentes, a dificuldade de comunicação diminui, mas perder-se na tradução continua fácil. Na aula de teatro, portanto, o professor ensina, a tradutora faz o seu papel e os alunos entendem o que querem entender. “A maneira como eles nos interpretam é muito diferente de como estamos acostumados a ser interpretados”, resume Martha.
Há ainda os personagens que transitam em torno de Martha e Maria, como o de Esteban Feune de Colombi (que foi o protagonista de “Além da Viagem”, filme de estreia de Braun, ambientado no Uruguai), um jovem que filma tudo, com obsessão, numa metalinguagem com o papel do diretor. O cineasta, aliás, retorna ao tema “relato de viagem” e, como consequência, ao inesperado que toda viagem carrega em si mesma.
Em Moscou, o inesperado pode ser, por exemplo, encontrar tanta doçura e atenção em um povo que aprendemos desde cedo a carregar nas tintas. Ou afagar o focinho de uma estátua de um cachorro e acreditar que o dia vai ser bom. E foi.
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