PR-0 nunca imaginou que chegaria a amaldiçoar a inteligência artificial, justamente o que garantiu a rápida evolução de sua espécie. O problema é que diversos membros da comunidade andavam mergulhados num caos sócio-político, favorecido pela segregação geográfica, e fazendo merda grossa. E, como sacou, um dia, um humano idiota qualquer, sem estabilidade, nenhum reino prospera.
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Quando sua equipe conseguiu os avanços mais promissores, no finalzinho dos anos 90 do século passado, um dos cientistas envolvidos no projeto não conseguiu se livrar da memória nostálgica: aquele filme clássico de 1966, Viagem Fantástica, que narra a epopeia de um grupo de médicos miniaturizados percorrendo vasos sanguíneos para fazer operações salvadoras no cérebro de pacientes.
Muita água rolou desde então; e se não havia sido possível, ainda, miniaturizar pessoas, as pílulas robóticas já estavam fazendo maravilhas em campos da medicina, desde a administração de remédios complicados e no apoio de diagnósticos, até na realização de cirurgias delicadíssimas.
Claro que, para chegar a esse patamar, os gênios de plantão tiveram que driblar algumas deficiências dos primeiros modelos de pílulas robóticas: embora ágeis para uns bichinhos que não mediam mais do que de 2cm³, elas ainda eram burras a ponto de errar caminhos dentro do organismo humano, o que acarretava inconveniências como não captar áreas problemáticas, levando a falsos negativos, inaceitáveis para uma ferramenta de diagnóstico, sem contar as cagadas cirúrgicas, que chegavam a ser quase desastrosas.
A solução demorou, mas chegou: dotar as coisinhas de inteligência artificial.
Foi assim que a PR-0 nasceu.
Pronto: o drama estava desfeito.
Ou não…
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Talvez a crise subsequente não se revelasse tão aguda se os “gênios” não tivessem insistido em turbinar a PR-0 com capacidade de se autorreplicar. Tudo em nome da ciência.
Aconteceu que, assim que descobriu que podia ser “mamãe”, PR-0 tratou de parir filhotes a uma velocidade estonteante.
E, para piorar, a pílula sabichona logo sacou que, dentre seus atributos, estava o de conseguir emitir comandos precisos para outras pílulas robóticas, mesmo as que eram implantadas em organismos alheios à sua “base de operações”. Ou seja: mandava e desmandava em outras PRs, introduzidas em qualquer outro organismo.
Embevecido, PR-0 logo sucumbiu à ambição de estabelecer um império, controlando pessoas-chave da espécie humana.
Só não contava que, com a inteligência — artificial ou não —, vem de “brinde” merdas como ambição política e senso territorial/patriótico. E eis que um número crescente de “colônias” deu para se rebelar contra o “império”.
Foi assim que a Coreia do Norte finalmente bombardeou a do Sul e se colocou na mira dos mísseis norte-americanos. E foi assim que aquele craque do futebol enfiou a mão nas fuças da top model, até então seu afair etc etc
As pílulas robóticas filhotes estavam usando seus hospedeiros humanos para travar guerrilhas entre si e, ao mesmo tempo, tentando firmar sua independência em relação à matriz.
Só livrava um pouco a cara o fato de os desatinos estarem confinados a ricaços e celebridades, montados na grana suficiente para se beneficiar do recurso das PRs, pois os procedimentos não custavam lá muito pouco.
No entanto, como a medicina de ponta acaba, quase sempre, se tornando acessível às classes menos favorecidas, não era de se duvidar que dia chegaria em que um reles usuário do SUS chegaria em casa bebaço e cravaria uma facada na mulher resmungona…
Se tivesse testa, PR-0 bateria nela com a palma da mão (também se as tivesse).