Caminho pelo Centro de Campinas nas calçadas de pedras portuguesas, desviando de um buraco ou um desnível, e volto às mesmas pedras descoladas das calçadas do Recife, de mãos dadas com minha mãe, apressada, a percorrer lojas enormes sob as galerias dos prédios antigos com seus pés direitos altos. Sinto-me em casa. Sinto que pertenço a esse lugar.
Não sou estrangeira. Não sou estranha.
E quando me perguntam “De onde você é?”, preciso elaborar a resposta que me parece simples demais se eu apenas disser que nasci e cresci no Recife, porque carrego em mim o maracatu, o frevo, o caboclo de lança, o carimbó, o bumba-meu-boi, a ciranda, as pontes sobre os rios, o mar e Iemanjá, a tapioca, a cana-caiana e o bolo de rolo; e trago junto o sertão dos meus pais, do interior de Alagoas, das mangueiras, do umbu, da secura e da fartura em tempo de chuva, do velho Chico, da feira, da jaca e do cajá, da mesa farta na casa de porta aberta, dia e noite, onde não se nega uma água, um prato de comida ou um conserto na roupa nem um tempo para prosear. Todo mundo dali é dali mesmo.
Tenho em mim, portanto, mar e sertão, em choque e harmonia; um sertão por onde minha memória navega como uma jangada no mar. São fragmentos que formam minha memória. Nas palavras do poeta João Cabral de Melo Neto, são “fragmentos trazidos à praia contra minhas ruínas” – parafraseando T. S. Eliot em The wasteland (“These fragments Is have shored against my ruins”).
Elaboro mais um pouco a resposta, e muito mais fragmentos de memória se acumulam. A neblina e a garoa de São Bernardo do Campo, a cidade operária de ruas de paralelepípedos com calçadas estreitas e casas geminadas. Lugar de muitos sotaques. Onde a inclusão se dá por adaptação, não por identificação. Cada um que chega procura seu espaço, seu pedaço, sua terra.
Sou estrangeira. Estranha.
Cronologicamente, chegam as lembranças de Salvador que se misturam entre os fragmentos. Tudo é quente: o sol, o mar, a pimenta do acarajé, os relacionamentos, e até a evidência das diferenças. Os espaços de cada grupo identificado são definidos por bairros, escolas, praias e clubes. A diversidade é organizada, não se mistura; o preconceito é velado, mas, ao mesmo tempo, a cidade acolhe. A inclusão se dá por cordialidade, dentro de limites.
Sou visitante. Bem vinda.
Depois de três cidades em três estados diferentes, o Banco do Brasil – a quem meu pai se dedicou e amou quase tanto quanto à família – nos transfere de volta ao estado de São Paulo, mas não mais São Bernardo do Campo; desta vez, Campinas. A complexidade da minha resposta só aumenta. “De onde você é?” Começo a não saber mais de onde. Se eu responder que sou do Brasil soa estranho. Mas era isso que eu queria dizer.
Por que Campinas? Para meus pais, casal que ascendeu pela Educação, que conquistou renda e conhecimento por estas vias, a cidade certa para os filhos seria a cidade com mais Educação, com oportunidades de ensino. Aqui, portanto, a inclusão se deu pela Educação, pela insistência e pela higienização.
Sou estrangeira. Sou estranha. Mas quando apago traços da memória e da herança histórico-cultural, sou incluída. Caio nessa armadilha, mas acordo a tempo e sobrevivo.
Entro num restaurante paulistano e vejo quase todos com a mesma ascendência, praticamente a mesma roupa, os gestos, o sotaque e o olhar excludente, tudo igual. Ambiente higienizado. Sinto-me estrangeira, estou “disfarçada” de igual, sou aquela que “não parece ser diferente”. E se eu falar ‘oxente’? Se eu tiver na pele outro tom? Se eu usar alpercata de couro?
Eu me sentiria como o garoto que olhava a vitrine de uma loja na calçada da Oscar Freire e ouviu a vendedora mandar que saísse daquele espaço. Ou talvez me sentisse como os jovens dos rolezinhos nos shoppings que eram obrigados a sair praticamente conduzidos pela Polícia. Talvez fosse igual à mulher que vestia camiseta vermelha em dia de passeata verde e amarela. E certamente me sentiria como o vendedor ambulante que foi morto em uma praia de Florianópolis. O crime? Não ser igual e ocupar um espaço que não lhe autorizaram, porque não lhe pertence.
Também me sentiria como a empregada doméstica que entra pela porta de trás e não pode sentar-se à mesa com os patrões porque precisa “colocar-se em seu lugar”, como, aliás, retrata o filme “Que horas ela volta?”, de Anna Muylaert.
Já me senti assim quando privada do espaço que eu pretendia ocupar. Por ser pernambucana? Sim. Às vezes, também, por ser mulher. Já fui convidada a sair de uma reunião de diretoria por ser a única mulher presente. Fui constrangida por ter opinião em lugares onde a mulher se cala. Algumas vezes excluída de quadros exclusivamente masculinos. E já precisei fingir não estar incomodada para parecer mais profissional e capacitada. Obrigada a omitir que sou mãe.
E nesse momento eu cruzo minha condição de mulher à de pernambucana, nordestina, brasileira. E trago junto minha profissão que também não me desgruda. Faço outra pergunta: Onde eu posso, afinal, falar sobre tudo isso, enquanto me debato em responder uma única pergunta (“De onde você é?) – por isso prefiro perguntar, como os físicos e cientistas, em vez de dar respostas.
Volto a João Cabral, e lembro da vida Severina que ele poetizou, mostrando a injustiça de reservar a alguém somente o espaço que lhe cabe em uma cova rasa, depois de vagar toda a vida em busca do seu lugar, seu pedaço de terra, onde pudesse ter vida digna e sensação de pertencimento.
Junto os fragmentos, arrumo as memórias, e tudo resulta em escolhas que, provavelmente, não poderiam ser diferentes. Opto por espaços com diversidade de gêneros, de cultura, de origem, de condição social e econômica, de etnias ou de características físicas. Não quero viver em ambientes higienizados, onde não cabe a diversidade. Opto por ocupar meus espaços. Como este aqui, espaço de reflexão e diversidade. Onde falar de tudo isso? É aqui mesmo neste espaço virtual.
Nasci na segunda metade do século passado, mas sou uma mulher no e do século 21, porque quero transformar. Passei por transformações sociais e pessoais tão radicais que, às vezes, mal me reconheço. Mas vi que guardei minha essência nas minhas memórias fragmentadas: mulher, pernambucana e jornalista.
Quero criar e viver em espaços de diversidade, um país de diversidade, onde há espaço para a mulher em sua condição de mulher; há espaço para o brasileiro, igualmente, de qualquer condição.
De onde eu sou, afinal?
Não importa. Sou daquela calçada de pedras portuguesas entre prédios de pés direito altos. Mas caminho por qualquer calçada e sinto que pertenço ao meu tempo e meu espaço.
O meu lugar é onde eu quero estar.
Adriana,
Que texto tocante, sincero e dolorido. Fui me consumindo a cada frase e a cada pergunta: De onde sou, afinal? Acredite: é uma pergunta recorrente ao meu universo.
Que bela estreia neste veículo. Acredito que será um espaço de diversas sensações e emoções.
Meus parabéns!
Bjs
Jorge, querido, a sua mensagem é que é tocante pra mim, porque eu sei o quanto você é sincero nas suas manifestações. Isso me deixa muito feliz. Obrigada, de coração. Grande beijo
Deliciosa reflexão. Com sensibilidade e contundência nos leva a repensar as “respostas automáticas” que damos aos outros e, principalmente, a nós mesmos!
Querido Cássio, já agradeci no ‘inbox’ e disse o quanto é importante sua opinião. Repensar e refletir. Faz tempo que fazemos isso, né? Beijo. Obrigada.
Que grande estreia ! Adorei ler esse texto! Parabéns e sucesso !
Linda Fabi, obrigada amiga! Sucesso para todos nós! Daqui a pouco você chega por aqui com sua colaboração deliciosa! Beijo
Adriana meus Parabéns pela iniciativa , adorei o texto , adorei seu histórico de vida , desejo muito, muito, sucesso neste nosso universo cantado em versos e prosas , seja bem vinda , bjssss
Lu, minha amiga, que alegria de saber que você “me leu”! Muito obrigada pelo carinho de sempre. Beijos
Bendita essa calçada (rede social) que permite meu tropeço, numa tarde como a de hoje, neste signo que combina deliciosamente forma/conteúdo/expressão. É raro ver diante de tantos buracos (opiniões idiotas que só essa maldita rede social permite) desta calçada algo tão inteligente, belo e sensível. Parabéns Adriana .
Deda, querido, pra variar, tem poesia até nos seus comentários. Você tem toda razão: essa calçada é gigante, esburacada, bela e contraditória, e nos leva a algum lugar (ou lugar nenhum!) e, de certa forma, também aproxima as pessoas. Obrigada por sua participação – fundamental pra mim. Beijos
Lindo texto, delícia de reflexão, cidadania criativa. Amei! Bela estreia! Que venham muitos e muitos mais!
Dani, minha amiga, sinto como se tivesse recebido um prêmio ao ler seu comentário! Você sabe como adoro seu texto! Obrigada, querida. Que venha muito mais, inclusive o seu! Beijo
Belo e poético texto.
Muito obrigada, Silvia. Prazer tê-la aqui.
Belo início nas letras da poesia que vira prosa, do Recife que vira Campinas
Tê, obrigada pela leitura atenta. Volte sempre. Vindo de você tem um valor gigante. Beijos.
O seu texto me fez viajar por todas as paisagens ali descritas, pois sou baiana e de sangue pernambucano, tendo passado um tempo em São Paulo e convivido com pessoas que estranhavam o meu sotaque num simples “alô” ao telefone do trabalho. De onde somos? Somos cidadãos do mundo e capazes de tecer a nossa própria história dentro dos nossos limites, é claro.
Parabéns pelo seu texto, pela sua estrutura e por nos fazer visualizar as paisagens e realidades desse mosaico que é o nosso povo.
Emília, sua percepção do mosaico que somos como povo brasileiro é belíssima, comum a pessoas sensíveis e cidadãs do mundo como você. Obrigada, amiga soteropolitana do coração.