O coração acelerado, mais suor no corpo, tudo quente com a adrenalina circulando, as células clamando por oxigênio. Assim reage o corpo ao beijo. Inspiração para o amor. Nos livros, no teatro, no cinema e nas praças, em tempos de amar, tem sido assim. Mas agora, em tempos de ódio, o beijo aparece em manchetes de tragédia, de atiradores, de homofobia, de morte.
O atirador norte-americano que matou 49 pessoas em uma boate, em Orlando (EUA), há uma semana, teria se irritado ao ver um beijo, disse seu pai. Dois homens que se beijavam o teriam inspirado a disparar contra centenas de pessoas.
Vejo em crônica como era Paris em 1955, quando “os casais de namorados eram donos da cidade”. “Beijavam-se por toda parte com beijos intermináveis, nos cafés e no metrô, no cinema e em plena rua, e até paravam o trânsito para continuar se beijando, como se tivessem consciência de que a vida não ia durar para tanto amor”, escreve Gabriel García Márquez na década de 1980, quando falava de Georges Brassens (crônica publicada no volume 5 – Crônicas – de ‘Obra Jornalística’, Editora Record, 2006).
Gabo já protestou em seu texto que, nos anos 80, ninguém mais se beijava como antes em Paris. “E perguntamos assustados o que aconteceu com tantas pessoas que se amavam tanto e agora não são vistas no mundo?”.
Mais de 30 anos depois, estamos todos assustados. Se soubesse desta tragédia de Orlando, de mais um ataque de franco atirador nos Estados Unidos, do ódio ao beijo, o que escreveria Gabo?
O que diria Nelson Rodrigues, que escreveu ‘O beijo no asfalto’, em 1960?
Baseado em história real, o jornalista e escritor pernambucano desenrola uma trama de amor e ódio, uma tragédia contemporânea, um retrato da sociedade preconceituosa em torno de um beijo. Depois de beijar um desconhecido, desfalecido no asfalto, em um ato de amor, afeto, amizade e humanidade, Arandir passa a ter sua vida devassada, vasculhada, investigada por um repórter inescrupuloso. De honesto e trabalhador, passa a ser criminoso e suspeito, porque beijou um homem.
Penso em mais um beijo. Lembro de ‘O beijo da Mulher Aranha’, filme de Hector Babenco, com Sônia Braga e William Hurt (que levou Oscar de melhor ator), numa produção conjunta Brasil-EUA, de 1985, baseado em livro do argentino Manuel Puig. Ali estão na mesma cela um militante político e um acusado de corrupção de menor; um hetero e um homossexual. Mais um confronto da sociedade com a homossexualidade.
O que pode haver de tão odioso em um beijo? O que há de errado entre duas pessoas que se beijam? Um ato de amor, uma expressão de carinho, de intimidade, de prazer, de paixão pela vida que deveria inspirar o amor, nunca o desamor.
Omar Mateen, o atirador de Orlando, como ficou conhecido, frequentava um templo muçulmano, diz a polícia. Ele também frequentava a mesma boate gay Pulse onde praticou o massacre, dizem testemunhas. Batia na mulher quando sua roupa não estava em dia ou a comida pronta, diz a ex-esposa. Era uma pessoa estranha, dizem conhecidos.
As investigações continuam. E ninguém fala de amor.
Vivemos em um tempo em que o machismo, o ódio, a homofobia, a intolerância e a exclusão buscam forças, procuram brechas e tentam crescer nos vazios.
É tempo de se falar mais de amor. Ouço o músico Chico Science dizer isso em entrevista. O cantor e compositor, morto em acidente de carro em 1997, fala desarmado e sem erudição; diz com a alma: o amor é lindo.
E não é?
É tempo de voltar à Paris de 1955 descrita por Gabriel García Márquez, onde o beijo na rua acontecia a cada esquina sem tiros e sem ódio.
É tempo de se falar mais de amor.
O “beijo” é lindo!