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As pequenas grandes coisas (como o voto)

151211_107_Adriana_corte_512O movimento da ciranda, dois passos pra frente e dois passos pra trás, repetidas vezes, como as ondas do mar.

O ir e vir, a maré, a batida do coração, o pulsar.

Metáfora da vida, que vai e vem.

Tudo isso eu sinto com uma foto. Apenas uma foto acelerou meu coração, que bateu no compasso da ciranda.

A rápida passagem da foto aérea da Igreja de Boa Viagem, na abertura do filme ‘Aquarius’, do pernambucano (e conterrâneo, como a ciranda) Kleber Mendonça Filho, me transportou para as enormes cirandas que aconteciam todos os domingos na praça em volta da igreja de Boa Viagem, no Recife.

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Vista aérea da antiga Igreja Nossa Senhora de Boa Viagem, antes da formação do bairro e sua ocupação

Aquela pequena construção disposta na diagonal, para mim, na minha infância, era apenas uma referência do centro da praça. Não que nunca tenha entrado nela (muito pouco), mas era na praça, enorme, que tudo acontecia. Praça cheia de gente, de diversidade e de cultura viva.

Revivi instantaneamente os domingos de feira hippie em volta da igreja, que finalizava com uma enorme ciranda pernambucana.

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Em volta da igreja de Boa Viagem em sua forma atual, ainda com uma grande praça

A música vem também à memória: “Eu estava na beira da praia, ouvindo as pancadas das ondas do mar(…). Essa ciranda quem me deu foi Lia, que mora na Ilha de Itamaracá”.

Assim começa ‘Aquarius’ pra mim.

Começa, na verdade, a projeção do filme, porque antes de chegar à sala escura do cinema, ele já havia começado. Li a respeito da produção e da manifestação política em Cannes, onde elenco e diretores defenderam a democracia e o fim do golpe no Brasil. Foi enorme a repercussão.

Depois, com a ausência do filme entre os indicados à disputa do Oscar 2017, nova polêmica surgiu. A circunstância se caracterizou como veto, ou censura. Por tudo isso, antes de chegar aos cinemas, já se falava no filme.

Durante a exibição, no entanto, nada disso entrou comigo na sala de projeção. Como num filme de Woody Allen, eu entrei na tela, nas cenas, nas personagens, e parece que não saí até agora. A identificação foi imediata.

Talvez fosse um tanto óbvio que isso acontecesse, por ser no Recife (minha terra), sobre contexto local (da invasão imobiliária, que vi de perto e me incomodei), no bairro de Boa Viagem (onde morei e onde hoje há uma degradação urbana cruel), também por ser uma mulher pernambucana, jornalista, morena, mãe, gente arretada, que resiste, mesmo que seja para perder, e que nada contra a maré. Ora, é claro que eu me vi ali.

E vi também na personagem Clara, vivida por Sônia Braga, um enorme apego às sutilezas, para o bem ou para o mal. A vida, afinal, está nas pequenas grandes coisas.

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A atriz Sônia Braga interpreta Clara no filme ‘Aquarius’, de Kleber Mendonça Filho

A sutileza de quando ela sente uma música, desfruta de uma caminhada na praia, toma um vinho, passa a mão no rosto da amiga sinalizando toda a sua cumplicidade.

Ou quando ela entende o olhar de um filho, ou se magoa com uma palavra da filha, se entristece com o telefonema que não recebeu, se cala ao encarar o cinismo e prepotência de um jovem engenheiro rico que se considera superior por ter a pele mais clara que a dela, uma mulher morena cor de jambo.

Em cada pequena sutileza, a representatividade dos conceitos e do caráter de uma pessoa (ou de um grupo de pessoas).

Mas, no lugar de desistir e se deprimir na postura de mulher sozinha, viúva, que venceu um câncer, sua decisão é de resistência.

Ela é a única no prédio antigo onde mora, à beira-mar, que não aceita a proposta da construtora que pretende derrubar a edificação para erguer um novo e gigantesco edifício. Ela é a única que tenta preservar a memória afetiva e o valor histórico-arquitetônico do prédio. Ela é a única que não se rende ao apelo e à força do capital.

Ainda que pareça uma louca, ela resiste.

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Elenco do filme ‘Aquarius’ exibiu cartazes em Cannes contra o Impeachment o Brasil

E quando resiste e mantém sua decisão de não sair, mesmo sem o apoio dos filhos e mesmo enfrentando a falta de escrúpulos da construtora, ela sabe que pode não dar em nada, como não deu a ação na Justiça contra o motorista do carro que atropelou e matou o filho de sua empregada – uma realidade absolutamente comum no País.

Ela pode até ser um voto vencido no seu prédio, mas não deixa de exercer o seu direito ao voto, seu poder de decisão. Clara não se dobra.

Eu me prendi a todas as sutilezas do filme, assim como me prendo, no dia a dia, na fala oculta, no que não se diz, na apuração das intenções e das verdades escondidas.

Os verdadeiros sentimentos e pensamentos, ou seja, o caráter, a essência, a diferença da pessoa, acredito, estão nas sutilezas. Nas pequenas grandes coisas. As pequenas palavras, os pequenos gestos, os olhares.

Lembro do objeto em que se inscreve o poder (Roland Barthes, 1996), que é a língua (ou a linguagem), “desde toda a história humana”.

E isso está na nossa História.

Não vamos fingir que no atual momento histórico-político que vivemos no Brasil nós não nos deparamos com sutis e cínicas ações tão carregadas de preconceitos quanto as que Clara vivencia. Também vemos diante de nossos olhos a força do capital sufocando as memórias, os afetos, o respeito, de maneira inescrupulosa e, às vezes, sutil.

O que temos assistido, afinal, no Congresso Nacional, é a imposição dos interesses do capital, interno ou externo. Grandes grupos que manipulam deputados com propinas milionárias para que as leis beneficiem os planos de saúde, as grandes mineradoras, as escolas privadas e assim por diante.

Há quem não consiga enxergar porque acredita que os vilões e ladrões são aqueles com cara de mau, com imagem horrorosa, ou estereótipos que nos incutiram no imaginário coletivo. Ficam a esperar um ato terrorista para definir quem é mocinho e bandido.

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De repente, nos situamos em um momento em que as atitudes individuais ou nosso próprio voto aparentemente perderam o valor.

Então eu vejo Clara. Um voto. Uma pessoa que resiste.

Lembro que tenho em minhas mãos um voto. Penso que pretendo fazer valer o meu voto, porque é o voto em que acredito, mesmo que ele não traga o resultado que eu desejo (talvez!).

Porque ainda acredito que a vida precisa ser vivida com muita atenção às pequenas grandes coisas. Nas sutilezas e delicadezas está o grande saber e sabor da história.

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Igreja Nossa Senhora de Boa Viagem, no Recife

About Adriana Menezes

Pernambucana de nascimento e cidadã de qualquer lugar. Amante das artes, da língua e da vida em movimento. Por profissão, jornalista; por opção, analista de discurso; por vocação, fazedora de linhas com palavras. Sentimento à flor da pele em tempo integral.

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