“Fogo no Mar” (Fuoco Mare), que venceu o Festival de Berlim deste ano, é um documentário, mas não parece. Dá a impressão de ficção ao retratar o drama dos refugiados que aportam na pequena ilha siciliana de Lampedusa e alteram a bucólica rotina dos cerca de 6 mil moradores do local. O cineasta italiano Gianfranco Rosi reinventa o gênero. Entre idas e vindas, Rosi viveu quase um ano em Lampedusa. Pelo olhar dos habitantes e pelo olhar dos que fogem da guerra construiu um retrato muito atual dos nossos tempos. Sem roteiro, em uma postura quase invisível, flagrou a vida como ela é.
A verdade que o formato documentário exige ganhou poesia, compaixão, solidariedade e um toque de crueldade em um filme repleto de inocência, dedicação, amor… e tristeza. Com a câmera na mão, nas poucas cenas em que realmente foca nos refugiados, registra legiões de homens, mulheres e crianças que arriscam a vida na travessia que pode ou não dar certo. E os olhos de quem não sabe o que o futuro trará – e quem sabe? – deixam resvalar, em meio às sombras, um lampejo de esperança. Nos rostos, as emoções que nenhum ator/atriz poderia reproduzir, fazem a gente se remexer na cadeira.
No outro lado da história, o garoto Samuele Puccilo, de 12 anos, um entre os tantos garotos das famílias de pescadores de Lampedusa, descobre que tem um olho “preguiçoso” e terá de usar tampão no olho bom para fazer o outro trabalhar. Seu maior problema passa a ser como manejar o estilingue tão cuidadosamente construído que o espectador acompanha desde o início. Samuele, aliás, é o grande contraponto do documentário, o que garante a leveza necessária para que não nos afoguemos nas dores dos outros. Quando a criança aparece, suspira-se.
Outros moradores de Lampedusa são enfocados. Ali estão o locutor da rádio local, que recebe os pedidos para tocar músicas românticas, a mamma que prepara a macarronada com frutos do mar, o pescador que mergulha nas límpidas águas em um árduo trabalho solitário mas, principalmente, o médico da comunidade, Pietro Bartolo, com toda a compaixão que pode carregar para cuidar dos recém-chegados. Vivos e mortos.
Os momentos de vidas até banais são cortados pela chegada de novas levas de refugiados. O diretor acompanha várias operações de socorro a barcos em perigo pela guarda costeira italiana, tão sobrecarregada. Lampedusa, que fica no meio do caminho entre o Norte da África e a Itália, recebeu, nos últimos 20 anos, cerca de 400 mil pessoas, das quais pelo menos 15 mil morreram na tentativa. A carga emocional tem seu ápice quando, mesmo que de longe, o diretor focaliza os corpos amontoados de quem não suportou a travessia.
“Fogo no Mar” foi um dos destaques do festival de documentários “É Tudo Verdade”, no final de abril, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Na ocasião, Rosi recebeu a atenção da imprensa e explicou porque que não faz filmes com roteiro. “Gosto de construí-lo no dia a dia, escrevo o roteiro com a câmera, enquanto filmo. Prefiro descobrir lugares e pessoas, ganhar a confiança delas e filmá-las em suas rotinas. Um roteiro, uma estrutura pré-estabelecida, é uma forma de limitação. Trabalho sozinho. Ninguém me viu filmando em Lampedusa. Não filmo todos os dias e, quando o faço, é só em determinadas condições de luz”, disse.
Antes de “Fogo no Mar” já havia chamado atenção por seu documentário “Sacro GRA”, que venceu o Festival de Veneza de 2013, sobre os moradores do anel rodoviário de Roma. E tanta inventividade tem um quê de contramão. “Hoje, muitos documentários se parecem porque os realizadores são obrigados a escrever roteiros de 40 páginas. São filmes comissionados. Eu me recuso a fazer coisas assim”, disse o cineasta. Ainda bem. Grazie.
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