Facilita em muito a história em si ser real e ter bombado na internet, replicada por sites noticiosos de responsa: aeromoça alemã e vira-lata argentino desenvolveram um caso de amor e, de tanto o bicho colar o focinho carente na porta envidraçada do aeroporto de Buenos Aires, a garota o adotou e levou pra morar com ela na Alemanha.
Agora, vem a parte difícil: cismei de contar a história do ponto de vista do cachorro. Como estou longe de me ombrear com os talentosos Esopo e Walt Disney, peço desculpas antecipadas — principalmente à comunidade canídea — pelas minhas tosquices de sotaque. Isto posto, me arrisco…
Hola. Yo era un perro sin dueño de Buenos Aires y ahora me llaman Rubio. Creio que nem preciso salientar o quanto de fome e sede eu sentia todo santo dia. Até que naquele dia, verdadeiramente santo, a moça humana bonita entrou no café à porta do qual eu mantinha minha esperançosa e quase nunca bem sucedida vigília por algumas migalhas. O legal foi que ela me notou logo de cara, deu pra ver. E, ao sair, me presenteou com um belo sanduba e uma generosa vasilha com água. Lógico que devorei e bebi com sôfrega gratidão. Havia tanto tempo que eu não tinha tal regalo! Na verdade, acho que nunca tive…
O quê, aquela moça bonita e carinhosa, tão diferente dos petimetres y señoras snobs a quem eu mendigava, invariavelmente em vão? Claro que o velho Rubio aqui colou nos passos dela. A segui até o casarão que os humanos chamam de hotel onde ela estava passando umas noites, eu morrendo de medo, confesso, de ser escorraçado (como sempre fui). Mas rolou exatamente o contrário: minha amigona continuou a me tratar bem, e embora eu ficasse do lado de fora do tal hotel, ela sempre me dava atenção e até me presenteou com um cobertorzinho, coisa que ela usava no trabalho dela, acho.
Mas não tardou quando ela saiu do hotel com uma maleta. Me alimentou, deu água, fez um agrado final e partiu. Ainda bem que não marquei bobeira: apesar do pouco tempo, consegui não só saber o nome dela — Olivia Sievers — como descobri que morava num lugar chamado Alemanha e trabalhava como aeromoça, sabia eu lá o que era isso. Quando ela se pôs em marcha, colei nos calcanhares dela, tão elegantes naqueles sapatos de salto alto.
Ela entrou naquela edificação enorme, ali pertinho, de onde subiam e desciam aqueles pássaros enormes, prateados, com grandes rugidos. Mantive vigília defronte a porta principal envidraçada que lamentavelmente ostentava um cartaz muito do antipático que pelo que pude sacar proibia a entrada de cães… nem precisei exercer muito minha limitada capacidade de interpretação: os seguranças do tal aeroporto trataram de me botar pra correr; e juro: não foram nada gentis.
Porém, insisti. Até descobrir que minha princesa chegava ao tal aeroporto a cada período que nos cálculos humanos equivale a 2 meses mas que pros cães doem como uma eternidade.
Nosso reencontro e os posteriores foram uma festa: ela me alimentava e me acarinhava demais! Nosso caso, é óbvio, acabou se tornando público e famoso em Buenos Aires. O que certamente contribuiu pra que voluntários de um abrigo pra animais de rua me catassem quando eu estava distraído por tanta paixão. O lugar me tratava bem e por isso Olivia até apoiou a iniciativa; afinal, ela era uma moça muito ocupada — uma aero… moça, né? — e nem sempre estava na área pra me paparicar.
Só que meu desassossego não amainou: eu queria minha amiga! Então, fugi do abrigo bem a tempo de montar plantão de novo na porta do aeroporto. Aí, minha Olivia não resistiu e mexeu os pauzinhos — é, acabei ficando craque em algumas gírias humanas… — de modo a me embarcar com ela no grande pássaro barulhento. Confesso que o tal compartimento de cargas, eu numa gaiolinha, foi meio incômodo, contudo, o que interessava é que eu estava vibrando de felicidade.
Ich war ein Hund ohne Besitzer in Buenos Aires und rufen Sie mich jetzt Rubio. Und ich bin sehr glücklich.
Tão percebendo? Eu aprendo rápido.
Carlão, adorei. Lembrei de alguns cães que passaram pela minha vida. Vou contar esta pro Mateus e pro Felipe. Beijo, beijo.