Ah, tá bom, tá bom, confesso que andei adiando isto aqui. Por que? Sei lá se por algum prurido idiota produzido pela carga emocional, ou porque a coisa ainda me espeta a alma caminheira em vã com uma carga poderosa de nostalgia. Ou só porque o tema é realmente muito triste. Resolva você, hipotético porém sempre generoso leitor deste nosso blog.
O que nos interessa realmente é que chegou a hora de falar DELE. E que ninguém por aí ouse rir demais: zombar de crianças que nutrem amigos imaginários é politicamente muito, mas muito mesmo incorreto, né não? (e que ninguém por aí tampouco perca de vista que este pobre escriba sessentão que lhes enche o saco semanalmente nunca deixará de ser uma… criança).
Pois bem, chega de papo furado, vamos então à sangria, ao que parece, necessária e inevitável, do corpo/espírito de um velho escrivinhador mais perdido hoje em dia do que cachorro senil em dia de mudança): na cidade alternativa que eu habitei um dia (sei lá onde, sei lá quando, não adianta perguntar; apenas sei que a habitei e ela habitou em mim), tinha sempre um poeta cego, um cantador urbano cego, plantado nas trêmulas e murmurantes esquinas pelas quais eu passava em meus enganosos trajetos. Ele parecia adivinhar os meus passos bêbados e se teleportava para os pontos de encontro prováveis. E estava sempre com um poema na ponta da língua fantasticamente imaterial.
Uma vez, naqueles tempos, o poema se chamou A lenda da criação das sombras. Pelo que me lembro, era assim:
Quando eles chegaram aqui, um dia
era um dia que nenhum outro igualaria
luz de metal que nasce — grito de água nova
ração de pão e beijo, que dá e sobra
Mãos vazias de moedas — os corações tão nus
eles eram belos e repletos de luz
só traziam seus sonhos, seus cães — seus vinhos
Mas um dia inventaram as cidades e seus caminhos
e eram tantas fábricas, tantas forjas — tantas febres
mil e tantas leis — mil deuses de brilhos breves
coroaram tantos reis, coloriram mil inúteis bandeiras
afiaram as armas — foram doar seu sangue nas fronteiras
E o aqui virou um chão tão duro e o agora ficou tão sem futuro
que eles — que já eram velhos e estavam mortos
decidiram tirar as almas de seus corpos
e as colocaram à volta — feito antenas
pra avançar entre ruínas — sobreviver apenas
Mas as almas rastejaram por tantas pedras duras
que ficaram loucas, tristes — sujas
E hoje, quando vão às guerras, às camas — às compras
eles só sabem — só conseguem— chamá-las de sombras