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O Desejo de Eva

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Uma árvore, um fruto vermelho e o desejo.

Era isso que estava diante de mim, lá pelos anos de 1972, quando eu tinha meus 4 ou 5 aninhos. Mas só nestes três elementos se assemelhava à clássica visão do Paraíso, porque eu não estava acompanhada de Adão, nem pelada e tampouco era uma maçã. O principal ponto em comum era o desejo, o mesmo cerceado da mulher nas narrativas da criação e que, neste início do século 21, ainda precisa ser protestado pela mulher que clama por seu direito ao desejo de viver com prazer, e poder falar, decidir, amar, gozar, trabalhar, descansar, acertar e errar.

Assim como Eva, eu comi o fruto. Era uma pimentinha vermelha, redonda e suculenta, pendurada na pequena árvore do quintal sem muro do vizinho. Para chegar lá, eu escapei às escondidas da minha casa na Imbiribeira, bairro do Recife que não tinha os ares de conurbação que tem hoje, mas que já demandava uma trava no portão. Era uma casa de bairro, térrea, com quintal enorme pra correr e árvore pra subir. Nem sei quantos anos morei lá (preciso perguntar aos meus pais), mas lembro da roseira, da varanda e de inúmeras traquinagens, talvez as melhores da minha infância. A da pimentinha foi uma delas.

Eu comi a bolinha vermelha achando que teria o gosto doce da cereja em calda – fruta raríssima na região que eu não conhecia em sua forma in natura. Mas não era nada doce aquela pimentinha. Minha boca ardeu tanto e eu gritei tão alto que os vizinhos correram para me salvar. Foram muitos litros de água e colheradas de açúcar lançados na minha boca. E eu numa agonia maluca. O meu pecado, assim como o de Eva, foi descoberto, e eu fui punida por ele. Ambas punidas pelo desejo.

Nesta tenra idade, com certeza, eu já conhecia a história de Eva, que está, afinal, no livro mais lido em todo o planeta: a bíblia. Lá no início, ela traz das alcovas dos mosteiros – aqueles ambientes maravilhosamente descritos por Humberto Eco, que há pouco nos deixou – a narrativa que sobrevive até hoje, com suas mais diversas leituras. Seria apenas uma ficção que ficou datada no tempo e hoje é só um documento histórico? Não. Há quem a tome por verdade e a tenha como “cartão de visita” da mulher em sua condição de mulher. Muito mais que uma questão de fé sobre a origem do Homo Sapiens e do pecado, a história é um legado de culpa e submissão.

“E viu a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento; tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela”, diz lá em Gênesis 3:5,6. Pois esta mulher que se atreveu a escolher e a desejar o entendimento e o prazer foi condenada.

Diz ainda a bíblia: “No dia em que comerdes se abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal.” Depois do pecado consumado, continua a bíblia, começou um jogo de “empurra”: Adão culpou Eva; e Eva culpou a serpente. Todos com medo. Então veio a sentença: “Multiplicarei grandemente a tua dor; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará.” (Gênesis 3:11-16)

Assim ficou registrada a maldição divina sobre a mulher. Registrada por quem? Religiosos, homens, nas mesmas alcovas dos mosteiros. A bíblia, afinal, foi mantida por toda a Idade Média (e revista, recortada, remexida) pela Igreja e seus copistas, bem longe da grande massa analfabeta. Apenas séculos depois ela veio a ser a publicação mais lida no mundo, difundindo a sentença imputada à mulher, que se propagou por mais de um milênio.

Tela de Peter Paul Rubens, 1599
Tela de Peter Paul Rubens, 1599

Mas eis que surge sempre, em algum lugar, uma outra árvore, outro fruto e o desejo. Lá pelos idos do século XII, a monja alemã beneditina Hildegarda de Bingen defendia que a culpa não era da mulher, mas de Satanás, invejoso da capacidade da mulher de gerar vida.  Dizia Hildegarda, em defesa da mulher, que o demônio soprou veneno sobre a maçã. Esse veneno era o prazer e o desejo sexual.

Em sua obra De Gustu Pumu, Hildegarda de Bingen fala do sabor da condição humana e diz que “o desejo sexual é o sabor da maçã”. Nos seus livros de medicina, ela fez a primeira descrição do orgasmo feminino sob a ótica da mulher e dizia que o ato sexual era belo, sublime e ardente. Para uma mulher do século XII, era uma enorme subversão. Uma feminista em plena Idade Média, a olhar para a árvore, o fruto vermelho e o desejo.

Adão e Eva, de Jacopo Robusti Jacopo, da Toscana (1518-1594)
Adão e Eva, de Jacopo Robusti Jacopo, da Toscana (1518-1594)

“O feminismo é para quem gosta de transformações sociais”, diz a filósofa Márcia Tiburi, aqui no Brasil, mais de dez séculos depois de Hildegarda. Assim como a monja, Márcia defende (ainda hoje!) que a mulher saia do lugar secundário (inclusive no prazer) em que foi colocada, condição esta que se reflete na política, na Justiça, nos direitos, na esfera do cotidiano e da ética. “As pessoas adoram odiar o feminismo porque o feminismo é revolucionário. Todos os conservadores vão odiar o feminismo. Nunca vi um conservador gostando do feminismo”, diz Márcia.

A filósofa lembra que uma das primeiras bandeiras do feminismo na História, desde a antiguidade clássica greco-latina, depois na Idade Média e em seguida na Idade Moderna, foi a reivindicação pela educação das mulheres – o entendimento. “As pessoas acham que a educação das mulheres sempre esteve aí, mas as mulheres tiveram que conquistar a educação, a sua própria escolaridade, a sua formação.” Márcia Tiburi fala ainda mais sobre as transformações e a política: O espírito revolucionário feminino é o espírito de uma transformação na direção das liberdades individuais que respeitem ao mesmo tempo a coletividade.

Eu acredito que tudo isso cabe no cenário da árvore, do fruto e do desejo da mulher, porque está relacionado à liberdade, aos direitos, ao fim da opressão e culpa, ao fim do papel secundário da mulher e a todas estas condições que se impõem por força de uma narrativa milenar. Ainda que haja um novo discurso, a herança da maldição ainda se faz presente.

Além de conquistar o direito à educação, a mulher ainda luta por seu espaço na política. O Brasil tem apenas 13,4% dos seus municípios sob a gestão feminina – 658 cidades do total de 5.563, segundo dados da Secretaria de Políticas para Mulheres do Ministério de Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. É verdade que elegemos uma mulher para a presidência e que houve um crescimento na participação das mulheres: em 2001 eram 6% de mulheres entre os prefeitos; em 2009, 9%. Mas há ainda um longo caminho, sempre conquistado a duras penas – como se cumpríssemos, de fato, uma sentença. Nas câmaras de vereadores a participação das mulheres também é de apenas 13,5%. De 57.607 vereadores, 7.782 são mulheres. A situação motiva a realização da 4ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, que acontece de 10 a 13 de maio, em Brasília, para aumentar a participação feminina na política.

Isso quer dizer que há muito fruto pra comer ainda, e precisamos dar muito mais vazão ao nosso desejo, seja ele qual for – falar, estudar, chefiar, amar, cuidar, trabalhar, manifestar  ou de apenas experimentar algo novo. A mulher protagonista da sua história ainda está se consolidando.

Com a minha árvore eu entendi que a cada novo desejo experimentado eu vou sentir um sabor diferente: ardido, amargo, doce ou salgado, não sei, mas será sempre um prazer. A liberdade de desejar e escolher, sem culpa, já é um grande prazer. Só porque não sucumbi ao desejo, a minha pimentinha não me causou nenhum trauma.

About Adriana Menezes

Pernambucana de nascimento e cidadã de qualquer lugar. Amante das artes, da língua e da vida em movimento. Por profissão, jornalista; por opção, analista de discurso; por vocação, fazedora de linhas com palavras. Sentimento à flor da pele em tempo integral.

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2 Comentários

  1. Sou conservadoramente feminista. Se é que isso seja possível (rsrs)

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