Imagem de Sarau e Caminhada Poética do Portal Santos
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A ética e a poética das narrativas

151211_107_Adriana_corte_512Conheci Dalva pessoalmente numa mesinha do Giovanetti 1, no coração de Campinas. Marcamos pelo telefone. O objetivo era que ela, batizada como Maria das Dores, me contasse sua história de vida para avaliarmos a possibilidade de transformá-la em livro. Depois deste primeiro encontro, foram dezenas de entrevistas que resultaram no livro que escrevi em 2004, tornando real seu sonho de contar sua trajetória e falar da fome, da exclusão e da superação. Ainda no bar, quando eu já imaginava os primeiros parágrafos, lembrei de Carolina Maria de Jesus, que escreveu ‘Quarto de Despejo’, outra ex-catadora que na década de 1960 extraiu de si a mesma força e também o desejo de compartilhar sua vida. Juntando uma história à outra, uma contada por uma jornalista e a outra pela própria personagem, eu vejo o encontro do jornalismo com a literatura pela narrativa das tragédias e comédias da existência humana.

Quando vejo sob esta ótica, me agrada lembrar que hoje é o dia nacional do jornalista – 7 de abril. Ora, está tudo nos noticiários, nos livros e nas poesias. Narramos tudo o que temos e o que vemos. Falamos a todo instante das tragédias e comédias da existência humana.

“O jornalismo representa a vida e as ações dos homens (bons e maus), relata as tragédias e as epopéias modernas. Contam as histórias de nossos heróis e vilões, nossas batalhas, conquistas e derrotas”, teoriza Luiz Gonzaga Motta (trecho de ‘Análise Pragmática da Narrativa Jornalística’, em ‘Notícia e construção de sentidos’), leitura que me foi indicada pela jornalista Graça Caldas.

Em tempos de extremos e de um universo onde cabe tanto o bom quanto o mal jornalismo, essa leitura me imprimiu mais sentido à prática jornalística, que nos últimos meses, ao longo de cada dia, morre e nasce, eleva-se e submerge, como numa montanha russa. E ficamos a ver e ouvir esta briga de narrativas. Assistimos, ainda, o desinteresse do capital em todo o mundo nesta prática, quase que num esforço de decretar morte ao jornalismo.

Luiz Gonzaga Motta continua no texto: “A narrativa jornalística, por mais que se pretenda isenta e imparcial, é também fortemente determinada por um fundo ético ou moral”, porque tanto quanto em fábulas e contos infantis, há sempre em todo os casos uma ética e uma poética por trás. Porque, afinal, tudo é narrativa.

Definitivamente, é esta ética e poética das narrativas que me interessa e nunca suas parcialidades e interesses. Seja ela uma narrativa jornalística ou não.

 

Dalva

Lembro que Dalva me disse o quanto queria que seus vizinhos conhecessem sua trajetória de luta, publicada no livro ‘Dalva’, pela Editora Komedi (2004). O comércio e a casa que tinha naquele momento, com a família que construiu, foram precedidos por uma série de acontecimentos que ela precisava tornar conhecida. A ética e a moral que ela inseriu em sua história estavam no propósito de “ensinar os pais a educarem seus filhos”. Este, como me revelou, era seu principal objetivo.

Depois da enorme repercussão de sua história, Dalva (na capa do livro, à esquerda) passou a ser convidada para fazer palestras em todo o Brasil. Foi ao programa do Gugu (na época pelo SBT), deu entrevista a Paulo Henrique Amorim (TV Record), foi notícia de jornais e tornou-se famosa. Na mesma Ceasa onde ela catava restos de comida para sobreviver, ela agora caminhava e era reconhecida como ‘Dalva, a ex-catadora que virou empresária’.

Carolina_Maria_de_Jesus

Carolina Maria de Jesus (foto à direita) teve seu livro ‘Quarto de Despejo’ traduzido para 13 idiomas e foi vendido em mais de 40 países. Ela faleceu em 1977 e escreveu outros livros. É considerada uma das primeiras e mais importantes escritoras negras do Brasil.

Ambas sobreviveram por suas narrativas. Foi também a ética e a poética de suas narrativas que as fizeram expandir seus próprios mundos e de outros que as conheceram, como notícia ou como epopeias modernas. São narrativas da existência humana. E se elas colocaram ética e poética em suas narrativas e sobreviveram ao que desejavam, nós também podemos fazer o mesmo no jornalismo. É esta ética e poética das narrativas que me interessa.

About Adriana Menezes

Pernambucana de nascimento e cidadã de qualquer lugar. Amante das artes, da língua e da vida em movimento. Por profissão, jornalista; por opção, analista de discurso; por vocação, fazedora de linhas com palavras. Sentimento à flor da pele em tempo integral.

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