Não fomos nós que inventamos a corrupção. Na Roma Antiga , o Senado italiano de Júlio César (o mesmo que o esfaqueou com ódio até a morte – “Até tu, Brutus?”) já comprava votos ou praticava a chantagem para obter o resultado esperado. Mas em que momento, afinal, nós brasileiros teríamos incorporado a corrupção em nossas vidas a ponto de não nos surpreendermos mais com uma sonegação ou uma propina? Será que aceitamos por conivência ou por conveniência? Ficamos sem ação diante da corrupção na política porque somos todos corruptos?
Na semana passada eu precisei remarcar uma prova em uma das escolas onde meu filho estuda. Ele havia faltado. Fui informada que eu só não pagaria por isso se eu levasse um atestado médico. Começou o impasse, porque eu não tinha nenhum documento que comprovasse a gripe dele. Ora, mas são as regras, dizia a moça do outro lado do telefone.
Uma gripe de um dia em um adolescente não é motivo para levar ao Pronto Socorro ou a uma consulta médica de urgência, eu argumentava. O tratamento dado foi vitamina C e cama, com boa dose de chás. Expliquei que eu não o levara ao médico. Conclusão: eu não tinha atestado médico. O que atestava o motivo da falta do meu filho era a minha palavra.
São as regras
Continuamos no impasse. A atendente insistia que eram as regras. E eu apelava para o bom senso, além de protestar pela cobrança que, na minha interpretação, era um abuso e só deveria ser aplicada por motivo banal da ausência, e não por motivo de saúde. A insanidade da coisa começou a me deixar ainda mais inspirada para insistir na questão e me deu ainda mais convicção de que eu não deveria pagar por uma nova prova.
– Você quer que eu prove que ele ficou na cama, deitado em casa, com tosse, dor de cabeça e indisposição? Eu posso solicitar que a outra escola ateste a ausência dele. Mas eu não vou comprar um atestado médico, não vou cometer este ato corrupto só para provar que ele ficou doente. Também não vou recorrer a nenhum amigo médico para pedir um falso atestado.
Bom senso
Resultado: pedi para falar com a diretora. Dei os mesmos argumentos e ela aceitou a minha palavra como prova de que, por motivo de saúde, meu filho faltou no dia da prova. Tive sorte de encontrar uma pessoa de bom senso, não cegamente presa às ‘regras’ e que ouve argumentos. Tive apenas duas consequências indesejadas: precisei me deslocar para levar meu filho no meio da tarde para fazer a prova; e a atendente agora só dirige a palavra a mim de forma seca e sem nenhum sorriso.
Não vou dizer que nunca recorri a falsos atestados. Sim, já pedi para uma amiga médica, quando meus filhos eram pequenos e eu não tinha flexibilidade no meu horário de trabalho – sequer estava em Campinas durante o dia para resolver a questão. A doença era real, mas eles não tinham ido ao médico. Não me orgulho disso, mas naquele momento eu incorporei a nossa herança cultural corrupta. Hoje – acredito que mais consciente que antes – eu não faria o mesmo.
Conivência
Verdade seja dita: cada brasileiro consegue lembrar de algum pequeno (ou grande) ato corrupto. O famoso caixa dois não é estranho a ninguém no Brasil, o drible no Imposto de Renda, a fila furada no trânsito, e tantas situações do cotidiano. É bom que se diga que corrupção não é a mesma coisa que desobediência civil, porque a desobediência civil muitas vezes se faz necessária em situações de opressão!
Acredito que nossas pequenas corrupções nos tornam coniventes com a corrupção que acontece na esfera política. Parece que isso nos acomoda e nos faz achar que “é assim mesmo”. A Lava Jato da Polícia Federal, inspirada na operação italiana Mãos Limpas, já nos mostrou que os princípios que a moviam não eram nobres nem isentos de corrupção.
Assim como na Itália, a operação frustrou uma parte da população que agora entende quais os reais motivos da Lava Jato. E nós aceitamos. Como entender esta nossa falta de ação diante de um Congresso corrupto? Será que “é assim mesmo”?
Identidade, independência, Macunaíma
Faltando seis anos para comemorarmos 200 anos da Independência do Brasil, aqui estamos a tentar entender a corrupção endêmica que está entre nós. Ainda tentamos compreender a nossa personalidade, ainda buscamos a nossa identidade. Estamos com as mesmas questões de 100 anos atrás, quando surgiu o Modernismo como movimento cultural que propunha uma arte genuinamente brasileira. A ideia era encontrar a nossa identidade e valorizar quem somos.
O genial Mário de Andrade então nos mostrava: Somos todos Macunaíma! Somos o herói sem caráter criado por ele em 1928, um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna de 22. Somos aquele Macunaíma que é facilmente comprado e esquece a natureza, renega as tradições, porque não tem caráter e, por isso, impede que a cultura e identidade se fortaleçam.
De acordo com o Modernismo, o Brasil só se consolidaria se crescesse das próprias raízes, nem que para isso fizesse a fusão de nossa cultura com as outras, de maneira antropofágica, como se propunha. Mas, ao contrário disso, Macunaíma abandona suas raízes, despreza suas tradições e renega sua paisagem tropical. Mário de Andrade mostra uma realidade nua e crua de um povo, mas com o objetivo de, tornando explícito, buscar as tradições brasileiras afirmando o caráter nacional.
Há quase cem anos, Mário de Andrade criticava a cultura submissa e dividida do Brasil, o descaso com as nossas tradições e a importação de modelos socioculturais e econômicos. Ele mostra em sua obra que, quando o nosso herói está adequado ao meio onde vive, ele adquire sua identidade miscigenada que forma a verdadeira cultura nacional.
Alguma dúvida sobre o real objetivo da extinção do Ministério da Cultura pelo governo interino de Michel Temer? Ora, um povo com identidade cultural e que fortalece suas raízes culturais é um povo forte e difícil de governar.
Vamos chegar a 200 anos de independência ainda sem entender a nossa falta de identidade? Sem resolver a nossa conivência com a corrupção e submissão? Quando penso nisso, parece que Macunaíma me toma: “Ai, que preguiça”.
Conteúdo profundo num texto lindamente escrito.
O que posso dizer sobre um comentário deste vindo de você, Glauce, com altíssimo padrão de texto, exigência máxima e tanta capacidade? Só posso agradecer, querida. Só pela leitura já fico feliz. Eu sei que quando você tem críticas e argumentos sempre as expõe, e isso sempre me acrescenta muita coisa boa, mas nem veio nada inbox desta vez…rsrs Beijo e obrigada
Parabéns Adriana. Análise pertinente para os nossos dias, sobretudo para a galáxia das redes sociais onde se compartilha e se replica verdades absolutas, nem sempre absolutas.
Luciano, eu que agradeço a leitura e a participação. Concordo com você: há ‘verdades absolutas’ demais nas redes sociais. Espero que passe sempre por aqui. Obrigada
Boa essa abordagem. Mas não deixo de pensar, será a atendente a verdadeira vilã dessa historia?
Não estaria ela cumprindo ordens da própria diretora e essa, de forma bem conveniente, disfarçando bom senso para ficar bem na fita? No fim as madames se entendem e a subalterna é que leva a culpa do incentivo a corrupção… Texto bom esse, faz a gente pensar.