A vida gira, gira; girou. A vida é assim. As imagens perambulam pela memória. No Brasil, aconteceu desse modo. Em 1902, a população brasileira não chegara ainda aos 20 milhões de habitantes e era presidido pelo monarquista Rodrigues Alves. Enquanto Euclides da Cunha lançava Os Sertões, os socialistas, em manifesto, propunham, entre outras coisas, a extinção do Exército e do dinheiro. Se desse certo o manifesto dos socialistas, seria uma virada de cartas.
Manaus e Belém esbanjavam o dinheiro da borracha, e a imprensa se horrorizava com dois blocos carnavalescos cariocas que perderam dois foliões depois de uma pancadaria. O horror/humor ganhava realce com os velórios, que eram animados por bebedeiras e samba. Assim o Brasil seguia dançando e dançando.
O futebol, o esporte inventado pelos ingleses e hoje o mais popular do mundo, chegava de mansinho ao Brasil. Em São Paulo, mais exatamente no Velódromo, campo do Paulistano, encontrávamos uma plaqueta na arquibancada que dizia o seguinte: “É expressamente proibido vaiar”. O pessoal do tal velório nem apareceu.
As quatro mil pessoas que foram ao Velódromo, que ficava na rua Nestor Pestana, não podiam vaiar e tinham que se contentar em bater palminhas. Mais britânico e idiota impossível. Mas se imaginarmos que naquele tempo se exigia desculpas em inglês do jogador que fizesse falta, dá para entender o sono do jogo.
A São Paulo de mais de cem anos atrás era bem diferente. Em 1903, por exemplo, a Capital paulista, num gesto avançadíssimo, resolveu regulamentar o tráfego de automóveis na cidade, além de limitar a velocidade a 30 quilômetros por hora. Qual era a frota de carros? Seis. Isto mesmo: meia dúzia, o dobro da do Rio de Janeiro.
O torcedor que foi ao Velódromo, para assistir novamente a uma decisão entre São Paulo Athletic e Paulistano, não tinha que se preocupar muito com um possível atropelamento. Ou ele ia a pé ou de bonde, uma palavra arredondada do nome da empresa Bond & Share, que introduziu o carril elétrico de transporte urbano no Brasil.
Se o paulistano não tinha que se preocupar para atravessar uma rua, ele tinha que ficar atento à vestimenta com que saía de casa. Por não se atinar a este detalhe, um jogador do São Paulo quase melou a decisão do segundo campeonato paulista. O problema é que o jogador, um inglês que trabalhava em São Paulo, saiu para o Velódromo já devidamente uniformizado.
Quando atravessava a Praça Antônio Prado, um policial estranhou as roupas daquele homem. Cadê o terno? O jogador tentou explicar. Em inglês. Foi parar na delegacia, cujo BO o dedou de “circular em trajes carnavalescos, fora de época, ofensivos ao pudor por deixarem à mostra as pernas em público, no centro da cidade”.
O futebol tinha o seu lado burlesco. No Velódromo, o São Paulo, sem reservas, se negava a entrar em campo sem o atleta inglês. Com trinta minutos de atraso no início do jogo, os cartolas resolveram pedir ajuda à polícia para encontrar o jogador. O carnavalesco de pernas de fora foi então liberado para o jogo.
Com o inglês em campo, o time de Charles Miller – que trouxe o futebol para o Brasil ‑ ganhou de 2 a 1, para desespero do Paulistano, que reclamou com razão da arbitragem de Egídio de Souza Aranha.
Além de não ter marcado um pênalti para o Paulistano, o juiz, que devia ter algum compromisso importante, acabou o jogo sete minutos antes do tempo normal. E Aranha sumiu rapidinho.
Hoje, em um clássico entre Corinthians e Palmeiras, o torcedor pode ir ao estádio de pernas de fora que o policial não vai achar que é atentado ao pudor. Pode vaiar à vontade, principalmente se o juiz quiser acabar o jogo antes da hora.
Mas cuidado com o trânsito de veículos. A cidade de São Paulo não tem mais seus seis automóveis do início do século que se foi.
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