Quando eu cheguei ao casarão antigo no Centro de Campinas, onde o SOS Ação Mulher e Família ocupava algumas salas, parecia que eu havia chegado ao local errado. Além da tranquilidade e silêncio que eu não esperava, na primeira recepção a moça não sabia de nenhum agendamento de entrevista, e também achava que a pessoa que eu procurava não estava mais lá. Era primavera de 2015, havia sol e brisa, e eu conversava amenidades com o fotógrafo Adriano Rosa. Continuamos descontraídos e aguardamos sem pressa enquanto tomamos café. Eu não poderia suspeitar que, minutos depois, quatro mulheres que eu conheceria ali me dariam um voto de confiança (que ainda me emociona quando me lembro) e relatariam seus dramas pessoais e suas histórias de superação, na expectativa de que minha narrativa pudesse fazer alguma diferença nas vidas de outras mulheres, ou nas suas próprias vidas. Foi isso que eu fiz. Mas elas não fazem ideia de como isso também fez diferença na minha vida.
As fotos do Adriano venceram o prêmio Feac de Jornalismo 2015, na categoria Fotojornalismo, e eu fui finalista na categoria nacional Jornalismo On-Line, com a reportagem “Brincar é a cura da violência em família dentro do Projeto ReCriando Vínculos” (agenciasn.com.br/arquivos/4775), publicada aqui na Agência Social de Notícias (ASN). Foi uma grande festa para a equipe da ASN, que com apenas um ano, naquele final de 2015, já ganhou um prêmio e disputou numa categoria nacional com tantos outros trabalhos do jornalismo on-line.
Nossa pauta era o trabalho voluntário. Quando fomos atendidos no SOS, fizemos a mesma brincadeira de sempre ao nos apresentarmos: Somos Adriana e Adriano, a dupla caipira. Foi assim também nesta manhã de outubro. Depois, enquanto Adriano fotografava as crianças em suas atividades lúdicas propostas pelas profissionais voluntárias do ReCriando Vínculos, eu estava em outra sala só com as mães das crianças. Eram mulheres vítimas de agressão familiar: física, moral, sexual, psicológica, todo tipo de violência.
Na década de 1990, eu já conhecia o SOS Ação Mulher e Família (entidade de utilidade pública que sobrevive de recursos municipais, estaduais e federais, além de doações e trabalho voluntário), quando eu era uma jovem “foca”. Lembro que quando fiz matéria sobre a entidade naquela década, o ambiente era mais escuro, mais tenso, mais triste. Por isso estranhei quando cheguei para a entrevista neste novo endereço, no ano passado, e encontrei um ambiente iluminado, tranquilo e leve.
Ao mesmo tempo que ouvir os relatos daquelas mulheres me fez sentir um turbilhão de emoções – indignação, raiva, tristeza, solidariedade, preocupação –, eu também percebi que a mulher mudou e tem mais recursos para superar a violência. Não era apenas o local que estava mais iluminado. As mulheres, apesar de toda dor e sofrimento, também estão mais iluminadas que na década de 1990. Sim, ainda são vítimas de agressões dos seus parceiros e vítimas do sistema (incluindo a Justiça, que muitas vezes deixa a mulher de mãos atadas e não lhe dá o suporte e segurança necessários), mas as mulheres hoje estão mais conscientes dos recursos de superação. Pouca coisa mudou na sociedade dominada pelo preconceito e pelo poder masculino em inúmeras esferas, mas muita coisa está mudando ou em vias de mudar.
As histórias que me confiaram eu volto a contar aqui porque elas são reais e atuais. Estas mulheres existem, não são ficção. Também não são pessoas que estão distantes, em cidades longínquas ou bairros afastados. Elas estão inseridas na sociedade, são profissionais e mães, mas dentro de casa ainda são agredidas. As agressões as fragilizam a ponto de, muitas vezes, não conseguirem nem contá-las. Mas, quando conseguem, elas ficam mais fortes. Portanto, suas histórias devem ser conhecidas, como exemplo de força e de mudança, e porque elas merecem ser ouvidas.
Violência sexual
“Eu sofri agressão física do meu ex-companheiro, que tinha um histórico de violência familiar, além de ter problemas com drogas e álcool. Tenho um filho de 4 anos que também sofreu violência sexual, provavelmente da minha ex-sogra, avó do meu filho. Eu percebi mudança no comportamento do meu filho, até que ele me contou como era o carinho que ele recebia. Tem um juiz acompanhando o caso, mas eu ainda acho a Justiça negligente, porque não impediu o contato do meu filho com a família do pai. Estou tentando fazer com que a visita seja somente em local público, mas continuo lutando para preservar a dignidade do meu filho.
Agora eu tenho mais esperança e consigo falar sem chorar. Casei porque fiquei grávida. Aos poucos comecei a achar o comportamento dele esquisito. Quando vi que era droga, procurei a família dele, que já sabia e não me deu muita atenção. Eles eram omissos e diziam que não aceitavam devolução do filho. Eu vendi minha clínica, logo depois comecei a sofrer violência física. Ele pedia desculpas, dizia que era por ciúme, mas havia outros tipos de violência. É que no começo a gente nem percebe o que é de fato violência.” – Oito meses no ReCriando Vínculos.
Agressão física e psicológica
“Meu marido é usuário de droga e me agredia fisicamente. Eu também reagia. Meu filho de 7 anos começou a passar mal com frequência. Também sofri violência psicológica com ameaça patrimonial caso eu me separasse dele ou caso eu contasse para alguém. Ele dizia que eu ficaria sem nada se fizesse isso. Eu chorava muito, tive depressão. Meu filho começou a acompanhar o pai, ficava nos bares ou nos pontos de droga. Quase sempre ficava jogando enquanto o pai usava droga. Meu filho então protegia o pai, não me obedecia, não queria mais meu carinho, só queria ficar na rua. Cheguei a chamar polícia. Eu confesso que tive vontade de matar meu marido, fiquei muito agressiva na época. Acho que agora ele só não me bate porque está fraco, magro, por causa das drogas perdeu uns 30 quilos. Continuo casada, estamos falidos, mas agora eu não fico mais chorando o tempo todo. Voltei a trabalhar e não estou mais detonada psicologicamente como eu estava. A verdade é que a violência deixa a gente doente. Eu digo a ele que as pessoas agora sabem de tudo e que tenho o apoio da Justiça.” – Sete meses no projeto.
Testemunha de agressão
“Vivi 18 anos com meu parceiro e sofri violência psicológica. Meu filho de 7 anos sofreu muito com tudo que aconteceu. E tudo que nós queremos, afinal, é que os filhos cresçam felizes, tenham uma infância saudável e uma vida legal. Não quero que se repita a vida do pai na vida dele. Tenho um filho de 30 anos do meu primeiro casamento, que durou 11 anos. Tenho três netos. Eu era muito nova quando casei, forçada por minha mãe, que não me deixou ter infância nem adolescência. O meu filho mais velho também sofreu muito, porque o pai havia presenciado o assassinato dos avós. E tenho meu filho de 7 anos do segundo parceiro, que já tinha antes dois filhos e quase foi preso por não pagar a pensão deles. Fui descobrindo as coisas aos poucos, porque ele mentia muito, mas acredita na própria mentira. Era envolvente com todos, inclusive comigo, a ponto de me fazer achar que a culpa de tudo era minha. Ele colocava minha família contra mim. Ele me fazia parecer um monstro, só porque sou explosiva, mas ele era mentiroso, falsificava minha assinatura em cheque e me escondeu por dois meses que estava desempregado. Chegou a ir para a Europa por 20 dias dizendo que tinha um prêmio a receber. Ele mentia muito. Comecei a descobrir que ele devia dinheiro a todo mundo porque vieram as cobranças. Ele tirou tudo que eu tinha. Meu filho viu as pessoas ameaçando o pai e me ameaçando. Diziam que iam nos matar. Fiquei dois anos sob essa tortura psicológica e há dois meses me separei. Procurei terapia gratuita. Ainda estou conseguindo manter minha loja e agora meu filho está no ReCriando, e pede para vir. Sinto uma melhora nele.”– Há dois meses no projeto.
Perda afetiva
“Tenho uma filha de 10 anos, que até os 8 anos tinha um pai adotivo, que foi embora. Ela não conhecia o pai biológico, que é pai da minha filha mais velha de 22 anos. Ela perguntou e eu contei quem era o pai. Em novembro de 2014 eu fiquei muito doente, internada no hospital, e minha filha mais velha cuidou da mais nova. Mas a minha pequena começou a se automutilar e ter muito TOC . Encontrei apoio muito grande com o projeto ReCriando. Tanto eu quanto minha filha mais velha fazemos terapia no SOS Ação Mulher e Família. Aqui a gente se fortalece, porque temos colo, apoio, carinho. Consegui voltar a trabalhar. Eu sinto como se aqui fosse minha segunda família. Aprendi a enfrentar as situações. Estou separada há sete anos, por exemplo, e nunca fui atrás dos papeis. Antes eu não tinha forças para fazer isso. É difícil mexer com tudo isso. Mas aqui você fica mais leve. Essa semana eu até enfrentei o meu ex-marido. Acho que a depressão da criança acontece pela confusão dos pais. E minha filha já melhorou em muita coisa aqui.” – Seis meses no ReCriando Vínculos.
ReCriando
O projeto ReCriando Vínculos nasceu em 2001 dentro do SOS Ação Mulher e Família, que foi criado em 1980. Maria Isabel Penteado, psicóloga, terapeuta familiar e coordenadora do projeto, começou a observar que chegavam ao SOS mulheres da terceira geração de famílias com padrão de violência. A filha da vítima passava pela mesma situação, e depois a neta. Ela se juntou à socióloga e assistente social Cláudia Reischling, à doutora em Física Teresinha Serra Matos e à psicanalista Ruth Cerqueira Leite para trabalharem com a prevenção, e começaram o ReCriando.
Bela história! Bela iniciativa!
Estas histórias só nos fazem querer ouvir mais histórias e aprender mais e mais com as pessoas, não é mesmo Marta? Obrigada pela leitura, querida.
Maravilha de experiência, observação e talento para recontar! Parabéns Dri
É um privilégio do nosso ofício poder viver experiências como estas, não é Dani? Obrigada por sua participação e leitura, sempre, querida.