Deveria ser apenas mais uma tarde de expediente comum na agência do Banco do Brasil do centro antigo do Recife, mas a rotina foi quebrada pela entrada abrupta de soldados armados do exército que procuravam “o comunista Sarmento”. Foram direto para os andares de cima. O silêncio só foi quebrado no térreo quando, minutos depois, alguém chamou o funcionário Lindolpho, amigo de Sarmento. Era meu pai.
Antes de ser levado pelos soldados, Osvaldo Sarmento pediu para falar com um amigo. Para sua surpresa, deram permissão. Mandaram buscar meu pai, que subiu ao sexto andar sem saber, ainda, o motivo. “Estava lá todo aquele pessoal do exército, fardado e com armas. Sarmento então me disse: Lindolpho, avise a Teresinha”, conta meu pai, o amigo Lindolpho. “Na mesma hora, um oficial me disse: ‘O senhor não vai avisar nada a ninguém. Isso é por nossa conta’.”
Colocaram um capuz na cabeça de Sarmento, algemas nos braços, e o levaram a um dos diversos carros parados em frente à agência do Banco do Brasil, numa tarde quente de algum dia da semana do início da década de 1970. A alegação para a prisão era a sua atuação como líder estudantil e sua militância comunista. Ser estudante e bancário já era suspeito; o fato de ser comunista justificava a prisão.
Os dois amigos, Sarmento e Lindolpho, tinham muita coisa em comum. Além de serem ambos bancários, eram os dois alagoanos e, naquele momento, eram também universitários. Sarmento fazia Economia e meu pai cursava Administração de Empresas na Universidade Federal de Pernambuco. “Também já tínhamos sido vizinhos no edifício Impala. Lembro que foi o primeiro apartamento que comprei no Recife”, conta meu pai, que na época já tinha os três filhos nascidos.
Sarmento era um líder estudantil atuante. De fato, era comunista. Naquele momento da história do Brasil, isso era tratado como uma ameaça à sociedade. Eram todos perseguidos. Meu pai diz que os dois saíam juntos com as esposas, trabalhavam e estudavam no mesmo lugar, tinham forte amizade, mas meu pai decidiu não acompanhá-lo na militância política “Eu achei que não devia pensar só em mim. Eu temia pelo que poderia acontecer com a família.” Seu irmão Adaílton, meu tio, pensou diferente e chegou a ser preso também, por distribuir panfletos e alimentos nas ações de Dom Helder Câmara. Meu tio também colecionava o Pasquim, clandestinamente, e por esta sua “transgressão” quem se beneficiou fui eu, que herdei a coleção.
Assim que saiu do banco naquele dia da prisão de Sarmento, meu pai foi direto para a casa do amigo avisar à sua esposa, Teresinha, o que havia acontecido. “Não me intimidei. Os colegas falaram para eu não ir, mas eu precisava avisar. Já era noite e a casa deles era lá no bairro Piedade. Fui sozinho e não avisei nada a ninguém. A casa tinha um muro. Vi várias cabeças atrás do muro. Eram soldados escondidos. Eu dei o recado: Teresinha, o exército foi ao banco e levou o Sarmento. Só isso. Eu percebi que me seguiram até em casa”, relata meu pai, hoje às vésperas dos seus 80 anos. Ele conseguiu atender o pedido do amigo. Ninguém sabia, afinal, se seria ou não aquele o seu último pedido.
“ Decelis (minha mãe) disse que durante alguns dias, após o que aconteceu, alguém batia na porta de casa e perguntava quem morava ali. Isso era sempre antes de eu chegar do banco”, relembra. Foram oito dias sem notícias de Sarmento. Quando foi libertado, disse que não foi torturado. Sofreu pressão psicológica e passou por interrogatórios. O clima era muito tenso, porque tanto na Universidade quanto no banco o movimento de esquerda tinha muita adesão. Outros foram presos, torturados e até mortos. “Havia um sujeito na faculdade que eu achava muito estranho, desconfiava que era um cara do exército infiltrado. Sarmento disse que o viu várias vezes andando pelo quartel, enquanto esteve preso. Confirmou minha suspeita.”
Sarmento terminou a faculdade de Economia, concluiu um mestrado e, mais tarde, fez PhD nos Estados Unidos. Os dois continuaram amigos. No dia em que saímos do Recife, transferidos para São Bernardo do Campo, Sarmento e Teresinha foram ao aeroporto para a despedida. “Quando já estávamos em Campinas, recebi carta dele mais de uma vez. Mas agora eu não sei onde está Sarmento. Uma pessoa muito boa, honesto, íntegro”, diz meu pai.
A ditadura acabou.
As prisões por motivos políticos também acabaram. O exército não age mais dessa forma com um cidadão comum somente por suspeitas ou para submetê-lo a interrogatórios. Não há mais clima de perseguição. Não é mesmo?
Quando vejo sinais de que estas práticas podem ser reeditadas, penso no quanto perderíamos como país. A liberdade de opinião e de expressão, a democracia e um pouco de avanço nos direitos civis tiveram um custo muito alto para serem alcançados. O Brasil não merece perder estas conquistas.
Adorei, Adriana!!!
Gondo, fico feliz de ter sua leitura. Obrigada.
Muito bom, Adriana! 😉
Obrigada, Marta, querida.