O ano é 1022. A cidade, Orleans, na França. O fato, o lançamento do Tribunal Público contra a Heresia, possivelmente o primeiro dos tribunais do que ficou conhecido como Inquisição, o conjunto de instituições criadas no âmbito da Igreja Católica para evitar a dissidência e seus ativistas, os hereges. O horror inquisitorial atingiu o seu auge no período da Contrarreforma, o movimento de reação às diretrizes da Reforma Protestante. Por quase toda a Europa, por muitos anos fogueiras arderam como arma de guerra e assassinato contra homens e mulheres que ousavam questionar os dogmas católicos. Caso da poeta britânica Anne Askew, executada em praça pública em uma região de Londres a 16 de julho de 1546. De inclinação anabatista, um movimento que criticava muitos pilares católicos, a escritora foi morta após longas sessões de tortura.
Mil anos depois, a Inquisição está de volta, agora no formato dos tribunais propagados diariamente pelas redes sociais. Acusações levianas acontecem a todo momento pela Inquisição contemporânea, prima irmã das fake news. E a pessoa acusada não tem qualquer chance de defesa, no calor da divulgação instantânea do fato. No modelo inquisitorial original, às vezes o acusado até tinha alguma possibilidade de contestar, claro que sem qualquer chance de sucesso. Agora, não. É tudo na hora. Quando eventualmente acontece um reparo (não por quem acusa, geralmente), já é tarde. O estrago está feito, e com uma plateia enorme aplaudindo, como no momento em que Anne Askew era queimada.
Não dá para comparar o terror da Inquisição original com a atual. Aquela levou milhares à morte, do modo mais cruel possível. Mas os tribunais da Internet também deixam suas sequelas e feridas, é inegável. A questão é que algumas acusações se tornam crônicas e vão formando uma imagem, um consenso, que depois é difícil derrubar.
Muitos estudos mostraram como a Inquisição do Santo Ofício, de matiz católica, tinha múltiplos propósitos e foi utilizada como ferramenta política para a destruição do opositor, do diferente. Uma pessoa ou grupo poderoso que via seus interesses contrariados acusava o opositor de heresia e este era o caminho mais curto para a sua destruição.
Não é diferente com os tribunais da Internet. Em geral a acusação tem fundo político, é feita por alguém ou um grupo que não quer ver questionado o seu status quo, os fundamentos conservadores. Estamos falando de acusações que podem envolver siglas partidárias, crenças religiosas ou questões geopolíticas mais amplas.
Por isso é essencial, cada vez mais vital, que não se “compre” uma acusação tão logo ela aparece. É muito saudável buscar várias fontes, aquelas consideradas confiáveis, para se formar uma opinião. Hoje a acusação pode vir de uma forma até leve, caricata, divertida, através de um desses chamados memes. Mas o resultado é o mesmo se fosse feita de modo mais direto. As novas “bruxas” vão sofrer do mesmo jeito.
Este é um dos motivos pelos quais muita gente quer distância das redes sociais. Porque a mentira é uma matéria-prima permanente, agindo sorrateira e sempre destrutiva. Para aqueles que ainda navegam por elas, todo cuidado é pouco.
No caso do Brasil, é bom lembrar que o país foi colonizado por Portugal no auge da Contrarreforma na Península Ibérica. Daí a dificuldade histórica, atávica, para se pensar e agir diferente no nosso país. O “normal” em mais de cinco séculos é a censura, a negação e tentativa de destruição do que questiona, fere, o senso comum reinante. No atual ano da graça de 2023, um milênio depois do surgimento da Inquisição, o panorama brasileiro é mais do que propício para a proliferação de tribunais do pensamento. As chamas estão acesas.