Atibaia seco em 2014: rios e matas da APA de Campinas demandam atenção permanente (Foto Adriano Rosa)
Atibaia seco em 2014: rios e matas da APA de Campinas demandam atenção permanente (Foto Adriano Rosa)

Da febre amarela à cólera dos rios: lições de 1889 para a Campinas de 2017

No livro “Campinas do Matto Grosso: Da febre amarela à cólera dos rios”, de 1997, comentei o impacto da epidemia que por pouco não devastou a cidade no final do século 19, no auge da riqueza proporcionada pelo Ciclo do Café e em plena euforia do movimento republicano. Agora, 2017, que a febre amarela volta a assustar a metrópole que é polo industrial, científico e tecnológico, é importante resgatar as lições daquela tragédia, que teve seu auge em 1889 mas durou até 1897, um ano depois da morte do ícone local, Antônio Carlos Gomes. Tratei do mesmo tema em outros livros, como “Câmara em Foco: Os 200 anos do Poder Legislativo em Campinas” e “Campinas, Imagens da História” (Editora Komedi), de 2007. São três grandes lições que deveriam ser sempre lembradas.

1.A importância do saneamento. No início de 1889 Campinas era a “Meca” da República, a cidade em que os ideais republicanos estavam mais fortes no país, pela atuação de lideranças como Francisco Glicério e Manuel Ferraz de Campos Salles, que logo seria o segundo presidente republicano (1898-1902). O vigor do republicanismo, espelhado em marcos como o Colégio Culto à Ciência (de 1873), devia-se à força do café, que em Campinas impulsionou e foi impulsionado por ferrovias como a Companhia Paulista (inaugurada em 1872) e Companhia Mogiana (inaugurada em 1875).

Por causa do café, Campinas teve um dos primeiros grandes teatros do Brasil (o São Carlos, construído em 1850 e demolido em 1922) e uma das primeiras redes de telefonia, entre outras primazias. Entretanto, naquele começo de 1889, a cidade ainda não tinha nem de longe um sistema adequado de saneamento. Um projeto de abastecimento para a cidade tinha sido divulgado em 1885 pelo engenheiro Antônio Francisco de Paula Souza, mas somente em janeiro de 1891 começaram os serviços da Companhia Campineira de Águas e Esgotos, criada em 1887. O esgoto corria a céu aberto pelas ruas centrais, no lugar onde hoje está a praça Carlos Gomes funcionava um lixão.

Capa do livro lançado em 1997
Capa do livro lançado em 1997

O espaço urbano estava propício à proliferação de epidemias, algumas delas, como de cólera, já tinham sido registradas, mas a pior foi mesmo a da febre amarela, que deixou cerca de 2.500 mortos entre 1889 (o ano mais crítico) e 1897. A primeira vítima teria sido Rosa Beck, uma estrangeira provavelmente contagiada em Santos e que morreu em fevereiro de 1889.

A cidade passou a atravessar o que se chamou “estado de sítio sanitário”. Quem podia, fugia. Muitos médicos deixaram Campinas, mas ficaram alguns, incluindo o ituano Costa Aguiar, que acabou morrendo de febre amarela. Muitas ruas da região central têm nomes de personagens que se destacaram no atendimento às vítimas ou morreram no episódio, como a francesa Irmã Serafina.

Em razão da catástrofe, Campinas perdeu a liderança estadual. Muitos historiadores acreditam que ela seria fatalmente a capital do Estado. Como não se sabia a origem da doença, transmitida por mosquito, o combate era feito de forma equivocada. As ruas eram cobertas de piche e barricas de alcatrão queimavam nas esquinas, compondo um tétrico panorama, agravado pelas carruagens que subiam e desciam as ruas com os cadáveres.

Foi um terror, que gerou entre outros efeitos a corrida pela limpeza urbana e no início do século 20 Campinas já tinha um dos melhores sistemas de saneamento do Brasil, com a contribuição, entre outros, do sanitarista Saturnino de Brito. Infelizmente a cidade perderia essa liderança do saneamento a partir da explosão populacional das décadas de 1960 e 70.

Recentemente, a partir de programa iniciado no governo de Antônio Costa Santos e Izalene Tiene (2001-2004), a Sanasa passou a impulsionar o tratamento dos esgotos urbanos, com grande aporte de verbas federais. Os governos seguintes deram continuidade ao programa e Campinas agora está próxima de alcançar os 100% de capacidade de tratamento de esgotos. Será a primeira cidade metropolitana brasileira a atingir essa marca, que deve ser obviamente comemorada, assim como deve ser saudada a perspectiva do primeiro reservatório municipal de água. Muito falta, contudo, para um saneamento ideal na cidade, a começar pela coleta e tratamento de resíduos. Menos de 3% do lixo são levados para reciclagem, um índice muito distante do ideal de uma cidade que se pretende sustentável. Ainda há bairros sem coleta de esgoto. As enchentes continuam a causar problemas, pela ausência de um consistente plano de drenagem. É preciso caminhar muito no saneamento em Campinas e o caminho não passa definitivamente pela privatização dos serviços.

2. O impacto do desmatamento. Ainda há divergências sobre a origem da epidemia de febre amarela de 1889-1897, mas fortes indícios apontam para os efeitos do desmatamento acelerado naquela época. Como se sabe, o primeiro nome da cidade foi Freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Campinas do Matto Grosso, porque na época da fundação, em 1774, a região era toda coberta pela Mata Atlântica. A cultura do café, se gerou riqueza, por outro lado foi construída com a mão-de-obra escrava e com a derrubada de matas, em processo impulsionado com o polo ferroviário instalado na década de 1870 e 1880. As árvores eram cortadas para servirem como dormentes nas ferrovias e, além disso, as fagulhas emitidas pelas máquinas a vapor provocavam queimadas enormes. Essa dinâmica foi observada em todo estado de São Paulo. Há uma tese de que o desmatamento contribuiu para a migração do vírus da floresta para a zona urbana.

Pois um século depois Campinas tem menos de 5% de sua área coberta por vegetação nativa. Agora a doença é registrada no distrito de Sousas, onde morreram macacos contaminados. Os Distritos de Sousas e Joaquim Egídio representam a maior parte do que resta de vegetação nativa no município e agora, como maior parte da Área de Proteção Ambiental (APA) de Campinas, estão no centro da discussão provocada pelo novo Plano Diretor, em fase final de discussão. Há uma absurda proposta de extinção da área rural de Campinas, o que certamente aumentaria a pressão sobre as áreas de mata nativa. Na conjuntura atual, de demanda mundial pela preservação dos biomas, e à luz do que ocorreu na história, as matas de Campinas devem ser mais do que nunca protegidas e ampliadas, com amplo plantio de árvores nativas.

Capa do livro lançado em 2007
Capa do livro lançado em 2007

3. A força da solidariedade. A tragédia da febre amarela em Campinas entre 1889 e 1897 gerou um impressionante movimento de solidariedade, expresso em dois eixos principais. O primeiro eixo, o da solidariedade local, pelas instituições que já existiam (como Círculo Italiano, atual Casa de Saúde, Santa Casa e outras) ou por aquelas criadas em razão da epidemia, como a Cruz Verde e Sociedade Protetora dos Pobres. Também decorreram do episódio iniciativas como a criação, em 1897, por Maria Umbelina Alves Couto e pelo bispo D.João Batista Correia Nery, de instituição destinada a abrigar os órfãos da febre amarela – foi a origem do atual Liceu Salesiano.

Enfim, a gênese do forte sistema de ação social e solidariedade de Campinas é a epidemia de febre amarela do final do século 19. Agora, no início do século 21, em que a doença volta a assustar e em que muitas entidades sociais sofrem os efeitos da crise econômica, é importante relembrar essas origens, para ressaltar a relevância de maior atenção com as instituições que, na ausência do Estado, continuam cumprindo importante papel para a observação dos direitos de cidadania.

Um segundo eixo de solidariedade, fomentado pela tragédia da febre amarela, foi em escala intermunicipal. Muitas cidades se mobilizaram para socorrer as vítimas de Campinas, principalmente no caso da então capital imperial (logo federal), o Rio de Janeiro. Muitos eventos aconteceram nos teatros e outros espaços do Rio de Janeiro, com verbas direcionadas para socorrer os flagelados da febre amarela por aqui. A imprensa da capital teve importante papel nesse sentido – era o tempo em que a imprensa servia as grandes causas públicas, e não as de grupos particulares. A Praça Imprensa Fluminense, no Centro de Convivência Cultural, tem esse nome em homenagem aos jornais do Rio de Janeiro que se mobilizaram pelos campineiros naquela tragédia – fato que passou desapercebido há alguns anos, quando por pouco o lugar não mudou de nome… Solidariedade, a palavra hoje bem desgastada, deveria estar de novo no centro de políticas públicas direcionadas para o conjunto da população, rumo a uma cidade cada vez menos injusta e desigual.

Campinas passou há pouco tempo pelo trauma de grandes surtos de dengue e também ficou assustada com a aproximação da zika e chikungunya. Entre 2014 e 2015, conviveu, como grande parte da Região Sudeste,  com os sustos de uma estiagem intensa, que por pouco não gerou danos incomensuráveis. É evidente que mesmo áreas urbanas consolidadas, razoavelmente equipadas e ricas, estão hoje muito vulneráveis a variáveis climáticas, ambientais e/ou sanitárias. Esta é uma realidade para a qual Campinas e todas grandes conglomerações urbanas brasileiras não podem mais fechar os olhos. Crescimento a qualquer custo tem preço. E ele pode ser caro demais, como mostrou a febre amarela do final do século 19, quando, sob vários aspectos, se respirava muito otimismo.

 

Sobre José Pedro Soares Martins

Mineiro nascido com gosto de café e pão de queijo, ama escrever pois lhe encantam os labirintos, os segredos e o fascínio da vida traduzidos em letras.

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