Dentes2

Até os dentes

Andre_PB_400x400 “Só tinha uma pessoa que me fazia tremer mais do que a Dona Wanda, a diretora da escola Elmira. Era o Seu Lourenço, o dentista da escola. Nunca sabíamos quando tínhamos que fazer uma visita até sua maldita sala, mas lembro bem quando chegou o meu dia. ‘André Sarria, Seu Lourenço está te chamando’ disse a voz sem piedade. Meu chão sumiu e deixei de sentir as pernas, não sei como consegui chegar até a sua sala. Não entrei, fiquei na porta esperando como um pardal assustado. Ele, de costas, organizava algumas caixas de metal brilhante. Percebeu a minha presença e disse: ‘sente aqui’ apontando para uma grande cadeira de corvim marrom. Vi, em sua mesinha, algodões, pinças, agulhas, serrotes, foices, facas, facões, motosseras e junto aquele maldito cheiro, sim, era cheiro de éter, álcool e cravo. Esse cheiro impregnou em minha cabeça e ajudou a criar um filme de terror em que seu Lourenço, gargalhando, com os olhos arregalados, enquanto arrancava a minha cabeça. Meu coração ia sair pela boca, a mesma boca que agora estava completamente sem saliva. Mal deu tempo de eu dar um passo, desmaiei, caí ali mesmo como uma manga madura do pé.”

O paladar e o olfato são os únicos estímulos químicos que temos. Assim, cheiro e memória estão ligados e andam lado a lado no nosso cérebro. Isso explicaria, por exemplo, uma vontade de se fazer bolo num dia de chuva. Sim, o cheiro da chuva lhe remete a sua infância quando sua avó preparava bolos num dia chuvoso, o cheiro de grama cortada talvez lhe faça lembrar-se de seu avô quando ele podava as plantas do quintal de sua casa, o cheiro de diesel talvez lhe faça lembrar-se de sua primeira pescaria com seu pai. Hoje, quando sinto cheiro de cravo, eu me recordo imediatamente do Seu Lourenço e, estranhamente, sinto uma pequena pontada no meu molar. Sem o cheiro, um mar de figuras e imagens passadas deixaria de existir, memórias que não voltariam mais.

Cientistas Italianos fizeram uma descoberta incrível e inédita no campo dos cheiros e dentistas. Esse trabalho mostrou que dentistas são capazes de inconscientemente “cheirar” a ansiedade de seu paciente e, por conta disso, estão mais propensos a cometerem erros em seus procedimentos.

Essa é a primeira evidência de que o cheiro de nossos corpos pode revelar nossas emoções e, inclusive, influenciar o comportamento de quem está ao nosso redor. Isso pode acontecer mesmo que não nos damos conta disso, ou seja, mesmo que o cheiro não seja tão óbvio.

(Fotos gentilmente cedidas pelo futuro profissional Gustavo Sbrolini)
(Fotos gentilmente cedidas pelo futuro profissional Gustavo Sbrolini)

O trabalho envolveu estudantes de odontologia. Primeiramente, os pesquisadores convocaram 24 voluntários e utilizaram suas camisetas após um grupo deles realizar uma estressante prova acadêmica e daqueles que tinham uma prazerosa aula. O objetivo era obter cheiros de dois grupos, de um lado pessoas ansiosas e estressadas e de outro pessoas calmas. Em posse das camisetas, os pesquisadores pediram que estudantes de odontologia realizassem alguns procedimentos odontológicos em manequins; um detalhe, os manequins estavam vestindo as camisetas e os estudantes não sabiam de onde as camisetas vinham.

Os resultados foram surpreendentes, pois todos os estudantes que realizaram procedimentos odontológicos nos manequins que usavam a camisa de alguém que enfrentou uma situação estressante cometiam mais erros do que aqueles que realizam procedimentos em manequins que vestiam camisetas de alguém que passou por uma situação prazerosa. Os erros incluíam, entre outros, atingir, por engano, os dentes vizinhos àqueles em que se estava trabalhando.

Os pesquisadores acreditam que o “cheiro de ansiedade” do paciente é capaz de disparar as mesmas emoções nas pessoas ao redor, e no caso aqui os dentistas. Já comentei, anteriormente, em um texto, que cachorros são capazes de farejar cheiros de medo e de alegria nas pessoas, mas esta é a primeira vez em que um estudo científico mostrou que o cheiro de uma pessoa interfere no comportamento de outra pessoa.

Conversei recentemente com um amigo que é estudante de odontologia a respeito deste trabalho, ele me disse que é mais comum do que se pensa, se ele percebe que o paciente esta tenso ou estressado isso de uma maneira reflete em seu desempenho, “é como uma vibe”.

O estudo não avaliou profissionais experientes para determinar se eles também estão fadados a cometerem erros que um estudante comete. Os pesquisadores ainda não sabem se ao estar tenso e estressado a pessoa produz algum tipo de composto químico liberado junto com o suor.

Quem quiser saber mais, o trabalho “Smelling anxiety chemosignals impairs clinical performance of dental students” foi publicado na revista Chemical Sense e pode ser encontrado no seguinte endereço: https://academic.oup.com/chemse/advance-article-abstract/doi/10.1093/chemse/bjy028/4996077?redirectedFrom=fulltext

Sobre André Sarria

Os certificados e papéis dizem que eu sou cientista, mas prefiro ser mais um "escutador" da natureza do que cientista. A natureza fala e eu a traduzo em linguagem de gente. Nasci em Cajobi e trabalhei em Londres como Pesquisador no Rothamsted Research. Atualmente moro em Madrid onde sou Diretor de Pesquisa e Desenvolvimento em uma empresa Europeia de agricultura.

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3 comentários

  1. Lá vamos nós novamente, abrindo caminho para os profissionais serem inocentados de seus erros. Afinal, a culpa do profissional errar está vindo do comportamento inconsciente do paciente.
    Com base nessa pesquisa, quais são os apontamentos para os profissionais dentistas não serem influenciados pelas reações químicas dos pacientes?
    E, os pacientes foram pesquisados para saber se o odor de insegurança dos profissionais influencia no crescimento da ansiedade e medo nos pacientes?

    • Olá Fernando, não creio que os pesquisadores queiram tirar o “deles da reta” este trabalho utilizou apenas estudantes de odontologia e não utilizou profissionais da área que já atuam.

    • Será que não?

      Cade a contraparte do trabalhando mostrando a reação dos pacientes aos odores de inexperiência e insegurança do estudantes de odontologia?
      Ou a reação química só influencia no profissional, o paciente não é influenciado nessa relação?

      Como os pesquisadores respondem a isso?