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O adeus do patriarca

carlaozinho_0256_1200x600Esperar é sempre um pé no saco. Na fila de espera de visitantes num hospital, então, sem comentários. Ainda mais porque estávamos num grupo de 16: pela regra, só podiam ser admitidos nos quartos dos pacientes dois visitantes de cada vez, por um tempinho de meia hora. Porém, dada a importância histórica e afetiva de quem íamos visitar, o jeito foi sossegar o traseiro nas torturantes cadeiras plásticas, engolir as notícias velhas das revistas dispostas e segurar a onda.

Quando finalmente chegou a minha vez, entrei na companhia de uma mulher ruiva de meia idade a qual nunca vira antes.

Eu já esperava pelo pior, mas confesso que estremeci ante a cara encovada e o corpo esquelético do velho estirado na cama, ligado a uma infinidade de aparelhos.

À cabeceira do leito estavam duas mulheres, que pela semelhança física com o enfermo (se é que tal cotejamento era possível), presumi serem filhas ou netas dele.

O velho começou a falar — a tentar, ao menos — Os lábios ressequidos articularam as palavras, emitidas num tom quase inaudível pelo aparelho fonador já em estado falimentar:

— Salve, filhos! O que vou dizer-lhes será o mesmo que disse aos que os antecederam e que repetirei aos que os sucederem…

O moribundo tomou um folego dolorido e prosseguiu:

— Mesmo sendo inegável a decrepitude de nossa linhagem, creio que consegui reunir o máximo de descendentes que foi possível no pouco tempo que me resta. Claro que pra isso foi fundamental a ajuda destas minhas descendentes diretas — com um gesto de mão, também dolorido, fez menção às duas mulheres à sua cabeceira.

— Enfim, — apressou-se o quase morto — sei muito bem que vocês e seus ascendentes e descendentes optaram por não seguir o Juramento. Tudo bem, isso já era esperado, os grandes propósitos não perduram eternamente ante as chibatas do tempo. Então, eis que vocês são tão-somente frutos de miscigenações acumulados, mas que tem em comum, ainda que em graus bem variados, um laivo do nosso sangue ancestral: e pra quem, dentre vós, que nem se interessou em conhecer os nossos fundamentos, repito: o nosso sangue, Neanderthal.

***

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Do relato oral deixado por Suydhann Osdhyahh-uhiit, do Conselho de Anciãos:

“Diria que éramos felizes: catávamos alimentos das árvores, arbustos, da lama rica em vermes e crustáceos, caçávamos pequenas presas; fazíamos festas à noite ao redor da fogueira e até pintávamos coisas do nosso cotidiano nas paredes das cavernas.

Éramos tão felizes que a chegada dos estrangeiros não nos preocupou nem um pouco. Tudo bem que eles eram meio diferentes, física e mentalmente. Mas foi tudo na paz; no começo, vale ressaltar.

No início, depois de cheirarmos mutuamente os nossos traseiros, empreendemos muitas atividades juntos. Eles nos ensinaram a cantar sem esgarniçar tanto, nós os ensinamos a dançar de um jeito que não envergonhariam nem uma folha de grama.

E, lógico, transávamos. E tínhamos um punhado de filhotes.

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Mas foi nas lidas da caça que nossas diferenças se evidenciaram e foram se amplificando, a ponto de demonstrar que aquela convivência não teria futuro. Justiça sendo feita, é verdade que os estrangeiros nos ensinaram muito sobre técnicas de caçar grandes bichos, pulando o varejo miserável de verminhos e crustacinhos e bichinhos mirrados que mal enchiam as covas dos dentes. Só que eles demonstraram logo seu lado monstruosamente egoísta: primeiro, eram totalmente injustos nas partilhas, fazendo-nos contentar em roer ossinhos. Não demorou e demarcaram territórios de caça, aos quais simplesmente não tínhamos acesso. Verdade que eles eram melhor equipados, com lanças longas e utensílios de descarnagem, mas não precisavam ser tão brucutus, né?

A situação fodeu de vez quando eles partiram pra violência física, respondendo animalescamente à menor desobediência das regras do novo sistema.

A fome começou a dizimar nossas famílias, atingindo até mesmo muitas das crias mestiças que eram afetivamente mais ligas à nossa linhagem. Os invernos rigorosos assinalaram a terrível perspectiva: estávamos em via de extinção.

Foi quando os mais sábios dentre nós resolveram agir. O Conselho de Anciões se reuniu secretamente e decidiu: o mais prudente seria simularmos nosso desaparecimento total e organizarmos, nas sombras, um sistema que assegurasse minimamente nossa sobrevivência.

Arrastando nada mais que poucos utensílios essenciais, nos embrenhamos nas cavernas mais recôndidas e, precariamente protegidos pelas sombras da noite, mendigávamos da natureza o que possível para subsistir.

As atribulações daqueles tempos não impediram que fizéssemos o juramento sagrado: que as gerações posteriores conhecessem nossa história e se empenhassem em mantê-la viva através dos tempos.

Lógico que já prevíamos que a miscigenação progressiva e a própria dispersão histórica invalidaria um propósito tão purista. Porém, qualquer resposta ao apelo seriam bem-vinda”.

***

O velho emitiu um longo suspiro e morreu.

Deixei o hospital assolado por uma escuridão gelada de tempos idos e um travo de carne quase crua na boca.

 

 

 

 

 

Sobre Carlãozinho Lemes

Antes do jornalismo, meu sonho era ser... astronauta. Meu saudoso pai me broxou: “Pra isso, precisa seguir carreira militar”. Porém, nunca deixei de ir transmutando a sucata anárquica dos pesadelos em narrativas cambaleantes entre ficção científica, uma fantasia algo melancólica, humor insólito e a memória — essa tumba mal lacrada de maravilhas malditas. Assim, é o astronauta precocemente abortado quem proclama: rumo ao estranho e às entranhas!

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