Ele tinha seu lugar de honra. Na primeira fila, a primeira cadeira à direita do corredor central. Em toda a sessão, Bebe sentava ali, tirava o chapéu e o colocava no colo. O ritual era a senha para começar mais uma exibição naquele que seria um de meus pedaços do paraíso, chamado exatamente Cine Eden. Bebe, soube depois, morreria com mais de 100 anos. Mas em minha memória ele permanece ali, quietinho, extasiado, desde o momento em que o projetor era acionado e todos éramos sugados pela tela. E quantos como eu, moradores em pequenas ou médias cidades do interior, não passaram por essa liturgia, por esse portal para o além do horizonte que eram os cinemas locais, com seus nomes charmosos, suas músicas-tema encantadoras?
Tive muita sorte de frequentar vários deles. O Cine Eden foi o passaporte ideal para esse admirável mundo novo. O dono, o Vadico, ele próprio um desses personagens que nasceram para transformar pessoas. A gente sentia que o interesse dele com o Cine Eden não era ganhar dinheiro, mas oferecer a possibilidade de novos roteiros de vida.
Ele não media esforços em obter o melhor para a sua gente. Todos, ou quase todos, clássicos passaram por ali.
Conheci Chaplin, os bang-bangs, as comédias românticas, muitas películas noir e de terror, e claro Bond, James Bond , naquele ambiente escuro que jogava luz todas as noites em nossas mentes e em nossos corações. Foram muitos filmes políticos, como “O Caso Mattei” (de Francesco Rosi, 1972). Até o tricampeonato de 70 acompanhamos pela tela do Cine Eden, com os documentários que Vadico, nao sei como, exibiu pouco depois dos jogos no México. Mazzaropi, os pioneiros da Vera Cruz, Roberto Carlos. Tudo passava por ali.
O empreendedor não demorou em transferir o Cine Eden para um prédio maior e novinho, do outro lado da praça São João e, posso garantir, fui o seu maior freguês. Uma vez ele fez uma promoção especial. Se a pessoa pagasse um tanto por mês poderia assistir a tudo que quisesse. Meu pai me deu esse sonho de presente e eu ia em todos os filmes, e muitos deles repetidas vezes, como testemunhava o cartão verde totalmente picotado no fim de 30 dias.
Em um pequeno caderno, eu anotava todos os nomes das obras, elenco, diretor e citava algumas cenas. Aquele caderninho, que eu daria tudo para resgatar, foi minha credencial para a profissão que aprenderia a amar.
A canção do Cine Éden era, se não me engano, o “Tema de Lara”, mas também não me esqueço de “Os pobres de Paris”, a música que abria a sessão zig-zag no Cine Madalena, em Batatais, naquelas manhãs ensolaradas, a poucos metros de uma das maiores obras-primas de Portinari.
Ainda ouço em minhas lembranças “Dollanes Melodie”, do Cine Ipiranga em Ribeirão Preto, mas não me lembro, pena, do tema do Cine Teatro Santa Helena, de Monte Santo de Minas, que, além das projeções, sediava festivais de música – tempos em que os cinemas tinham uma função social e comunitária acentuada, como demonstrava o respeito que minha cidade tinha com o Bebe.
O tempo passou, mas o amor continuou e ainda peguei sessões maravilhosas no Broadway ou no Politeama, em Piracicaba, no Roxy do Rio de Janeiro (ainda firme, que bom) e em várias casas em Santos, talvez uma das cidades mais cinéfilas do Brasil. Sem falar, claro, do Belas Artes em São Paulo, incluindo algumas produções da Mostra Internacional. Cada lugar, um nome, uma identidade, um território com a sua arquitetura, o seu jeito de vender pipoca e seduzir.
Dia desses fui ver o “Spotlight” (Thomas McCarthy, 2015), por dever de ofício, e o que presenciei não foi apenas o ocaso de um modelo de jornalismo. O jornalismo investigativo, que vai a fundo, mesmo em situações escabrosas como a pedofilia na Igreja Católica. Assisti ao ganhador do Oscar em uma dessas salas de shopping. Muito modernas, com som não sei o que, com cadeiras especiais para colocar isso e aquilo. Mas ambientes frios (e não estou falando de ar condicionado), sem marca, todos iguaizinhos uns aos outros.
Estamos condenados a essa massificação? Uma cidade como Campinas, com seu 1 milhão de habitantes e um dos maiores PIBs do Brasil, orgulhosa de seu polo científico e tecnológico, de um aeroporto que a liga com o global, sem nenhum cinema antigo preservado. Uma cidade assim tem de, fato, futuro?
Saí de “Spotlight” feliz e orgulhoso de meus colegas de profissão, mas não pude deixar de pensar no Cine Eden e me entristeci um pouco. O Brasil perdeu um de seus maiores patrimônios culturais, aqueles centros de arte e reflexão que nos abraçavam e nos diziam: esta é a vida, faça da sua o melhor possível.
Até quando vamos nos contentar com apenas o que a indústria cultural nos reserva, seja em termos de cinema (espaço físico e conteúdo), mas também no rádio, na TV e até mesmo na Internet, terreno originalmente aberto à diversificação e gratuidade mas cada vez mais pago, hegemônico e dominado por grandes corporações? Vamos encarar o corredor escuro e ver o que tem do outro lado da tela? A lembrança de Bebe, viajando, se deliciando com a magia traduzida em sons e imagens, me diz que valeria à pena.
Bons tempos os do nosso Cine Éden, meu caro José Pedro! Filmes que mais me recordo: Os Dez Mandamentos, O exorcista, King Kong, os de Jerry Lews, Elvis, Mazzaropi, Giuliano Gemma…
Abraço, lindo relato!
Obrigado Ilza, todos bebemos daqueles filmes, abraço!
Ah, que saudades! Passou um filme em minha mente também, lendo seu texto Jose Pedro! Como é bom recordar, ter histórias para contar, ter memória para reviver. Adorei. Abraço.
Muito bom mesmo Solange, obrigado e abraço!
José Pedro, vi através do filme de minhas lembranças a sua narrativa. Cine Éden, Bebê, e tudo que vivos nos idos anos de infância e adolescência. Obrigada .
Corrigindo: onde se lê vivos, leia vivemos.