Se eu tivesse que apontar qual seria a mais grave das crises simultâneas que estamos presenciando – no Brasil e no mundo – eu diria que é a morte da palavra. Eu entendo que a palavra está morrendo e, se o óbito for confirmado, teremos que reinventar tudo o que conhecemos sobre o que é viver em sociedade, produzir cultura e habitar o meio ambiente. Para mim, são três os principais fatores que contribuem para a agonizante e paulatina morte da palavra, que já foi tantas vezes impressa em papiros ou livros, escrita com giz, lápis ou máquina de datilografia, como aquela simples em que eu aprendi, em doces e despreocupadas tardes na minha Itamogi, com a querida Tia Nenê.
Em primeiro lugar, a palavra está morrendo porque há excesso de palavra. Muitos já falaram sobre este fenômeno, que foi acentuado pela emergência da internet e, particularmente, das redes sociais. Nunca na história houve tanta palavra fluindo e confundindo.
Com o excesso acontece o desgaste das palavras. Vários poderiam ser os exemplos, mas cito apenas o caso da palavra “sustentabilidade”. Como já aconteceu certa vez com “ecológico”, tudo agora é sustentável. E, se tudo é sustentável, o que será de fato sustentável?
Há, de fato, com o uso saturado, desmedido, um grande risco de degradação das palavras “sustentabilidade” ou “sustentável”, sem que tenha ocorrido um consenso sobre o que efetivamente elas significam. E isso acontece com muitas outras palavras muito utilizadas, mas ainda pouco praticadas, como “transparência” ou “empoderamento”.
Enfim, o uso contínuo e inadequado das palavras está levando à corrosão do que elas representam. Há muita forma e pouca substância. De algum modo Bauman resumiu essa volatilidade em seu conceito de “sociedade líquida”. Mas o fato é que, hoje, é fácil tudo se esvair, inclusive o maior patrimônio cultural da humanidade, que é a palavra.
O segundo fator, na minha perspectiva, para a morte gradual da palavra é o fortalecimento da imagem. A cultura humana, em toda a sua história, foi essencialmente oral e depois literária, embora, claro, desde as cavernas a imagem faça parte do vocabulário universal.
Mas na sociedade contemporânea a imagem é cada vez mais poderosa, e também muitos já falaram com muito mais propriedade sobre isso. A televisão, o cinema, a publicidade, o Youtube, os celulares onipresentes – várias plataformas incensando e valorizando a imagem, que também aparece em excesso, avassaladora, como a própria palavra.
Um ditado muito conhecido afirma que “Uma imagem vale por mil palavras”. Uma expressão que tinha o seu valor em determinado contexto histórico. No atual, em que há uma profusão de imagens, por todo canto, a toda hora, o ditado é muito mais cruel com o legado oral e literário de toda as comunidades humanas.
De novo poderiam ser elencados diversos exemplos, mas fiquemos no campo da política partidária. Há muito a propaganda partidária é essencialmente imagem. Não importa o que se fala ou se escreve, mas o que se mostra, com belas, tocantes, emocionantes e, muitas vezes, deturpadas imagens. A palavra, particularmente quando ela diz algo realmente importante, foi deixada em último plano.
E, em terceiro lugar, eu apontaria o elemento que para mim é o mais inquietante, e que decorre também dos dois precedentes. A questão é que, no mundo atual, as palavras se descolaram de seus reais significados, do que elas concretamente representam.
Vejamos o caso de “corrupção”. Hoje a expressão “combate à corrupção” é dita por todo mundo político partidário no Brasil, mesmo por parte de quem não tem lá um currículo tão limpo. Então se qualquer um pode dizer que está praticando o “combate à corrupção”, o que seria realmente “combater a corrupção?”
“Faço isso em nome de Deus e minha família”, “estou praticando justiça”, “queremos controle dos gastos públicos” são outras expressões, ditas por quem, respectivamente, (1) não atua necessariamente em sintonia com preceitos religiosos puros e humanistas, (2) faz justiça vendo apenas um lado de uma situação complexa e (3) prega o controle de gastos públicos mas adora quando o Estado dá um subsídio generoso para certo segmento da economia.
Em suma, palavras e expressões estão se esvaziando, definhando, em direção a uma morte que pode ser fatal para todo o conjunto social.
Porque se, vivendo em sociedade, o ser humano produz símbolos, gera sentidos, discorre narrativas, a palavra é o principal amálgama social. E esse diamante cultural brilhante, que já pariu tanta beleza, que deu voz a gênios como Cervantes, Shakespeare, Dante, Clarice Lispector, Simone de Beauvoir, está ameaçado de morte, tudo o mais está.
Eu ainda acredito no poder da palavra, em sua redenção, em um novo renascimento. Mas no momento os sinais não são nada animadores.
Belo texto, Zé Pedro!
Assistindo a exposições, nas sessões recentes do Senado, por exemplo, vemos as mesmas palavras mudando de bocas, pretensamente clamando por sentidos diversos e mesmo opostos… Valores conotativos ou denotativos aplicados em sequências falaciosas…
Ainda, como você, Zé Pedro, também acredito na palavra!
E, continuo pensando que precisamos trabalhar mais, muito mais, para que mais e mais cidadãos consigam ler e escrever, falar e ouvir com propriedade e espírito crítico acurado, não se submetendo ingenuamente às mazelas das tais palavras em lábios mal intencionados!
Um grande abraço!
Maria Helena