A Internet mudou e vai continuar mudando tudo, mas não a essência do bom e velho jornalismo de sempre (Foto Adriano Rosa)
A Internet mudou e vai continuar mudando tudo, mas não a essência do bom e velho jornalismo de sempre (Foto Adriano Rosa)

Proust, jornalismo de celebridades e paixão pela profissão

As obras-primas da literatura são obras-primas porque universais e atemporais. Não importa o lugar nem a data em que foram escritas e/ou publicadas. As verdades ou incertezas que elas transmitem são eternas. Muito já se falou, por exemplo, sobre a universalidade e encanto permanente de “Em busca do tempo perdido”, de Marcel Proust. Vou me ater apenas a um tópico, que diz respeito diretamente à profissão que escolhi e que amo tanto, o jornalismo.

A passagem está em “No caminho de Swann”, o primeiro dos sete volumes da obra imortal, e mais precisamente quando a “tia Flora” debate com o próprio Swann sobre o status dos jornais da França da época: a segunda metade do século 19. Swann faz uma referência aos “diários aborrecidos que nos sentimos obrigados a ler de manhã e à noite”, no que é interrompido por “tia Flora”, que afirma: “Não sou de sua opinião, há dias em que a leitura dos jornais me parece bem agradável…”

Swann não deixou por menos e esclareceu sua opinião – naturalmente a de Proust – sobre o que pensava dos jornais parisienses: “O que censuro nos jornais é o fato de nos obrigar a prestar atenção, todos os dias, em coisas insignificantes, ao passo que lemos três ou quatro vezes na vida os livros em que há coisas essenciais”. Fez mais alguns comentários na mesma linha e propôs que os jornais publicassem pérolas literárias como os “Pensamentos” de Pascal, com o mesmo peso que se dedicam a informar que “a rainha da Grécia foi a Cannes ou que a princesa de Léon deu um baile à fantasia”. Se houvesse a proporção equivalente proposta, completa Swann, “estaria restabelecida a proporção justa”.

Claro está que Proust se refere ao “jornalismo de celebridades”, ou amenidades, ou coisas fúteis, que ele evidentemente condena. E isso entre o final do século 19 e início do século 20! Proust nem imaginava o nível a que chegaria o “jornalismo de celebridades” no início do século 21, quando a imprensa e mídia em geral sentem os impactos avassaladores da Internet.

Os espaços dedicados à vida pessoal do jogador de futebol tal ou da cantora qual são cada vez maiores, em relação ao que poderia ser chamado de jornalismo tradicional. É uma queixa recorrente e muito bem fundamentada. Há uma diluição geral, está cada vez mais difícil praticar o jornalismo “de verdade”, pela redução dos orçamentos, pela deterioração de um modelo de negócios que vigorou durante décadas na imprensa. Mas também pela força crescente dos apelos da sociedade de consumo, das tendências à padronização cultural e a um modo de ser e viver acrítico, imerso no hedonismo e no materialismo.

Tudo isso é fato, nu e cru. Assim como também é fato, irrevogável, que o bom e velho jornalismo de sempre continuará existindo, independente das plataformas que surgirem – e vão surgir novas, estamos apenas na infância das transformações tecnológicas. O jornalismo feito com garra, paixão, que se preocupa em buscar não a verdade toda, pois isso talvez seja impossível, mas pelo menos parte dela. Ao menos alguns elementos que ajudem o leitor, internauta, espectador, ouvinte, enfim, o público a refletir sobre o que está se passando e a tomar suas decisões.

E sempre um jornalismo contra o poder, qualquer poder. O jornalismo afinado com o poder, qualquer que ele seja, está fadado ao desaparecimento. O jornalismo tem que estar atento, vigilante, com relação a qual pessoa, partido ou, em sentido mais profundo, qual sistema corporativo esteja no poder.  Pois é este o fundamento e a base do poder, não é? Então, circunstâncias e eventos e contextos não faltam, nos velozes e incertos tempos contemporâneos. Tempos líquidos, para homenagear o recém-falecido Bauman. O jornalismo é, e será sempre, uma das invenções humanas para tentar dar alguma solidez, algum sentido, à vida geralmente frágil, contraditória, às vezes absurda.

Sobre José Pedro Soares Martins

Mineiro nascido com gosto de café e pão de queijo, ama escrever pois lhe encantam os labirintos, os segredos e o fascínio da vida traduzidos em letras.

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