Civilização ou barbárie? Nos últimos dias Campinas deu importantes passos rumo ao futuro, com o anúncio pelo governo municipal da desapropriação de área para a construção do primeiro reservatório de água, no distrito de Sousas, e a assinatura de contrato com o governo federal, para liberação de recursos destinados à implantação do sistema BRT (Bus Rapid Transit, em inglês, como tudo no Brasil que adora o que vem de fora), beneficiando a região mais populosa da cidade. Também nesses dias, por outro lado, foi confirmada a morte de macacos por febre amarela também em Sousas, a cidade acompanhou a desocupação de centenas de famílias sem-teto de uma área particular e foi informada a respeito da superlotação em UTIs que recebem bebês. Claros sinais de elementos estruturais que continuam afetando a metrópole que se orgulha de ser polo científico e tecnológico. Pois a história está cheia de exemplos indicando que a crença em um progresso contínuo, irreversível, pode ser muito perigosa, se esquecidas questões cruciais de base, de fundo.
A própria Campinas foi emblema disso, com a epidemia de febre amarela no final do século 19, justamente no apogeu do poder do café e do movimento republicano, afinal vitorioso no mesmo ano do principal surto da doença. Na transição dos séculos 19 e 20 era, de fato, grande a euforia em todo mundo em torno de um crescimento ilimitado, em função dos avanços científicos e tecnológicos do período. Entretanto, não foram poucos os alertas quanto ao risco dessa fé cega na técnica e na ciência. As descobertas de Freud, na realidade as descobertas de novos continentes, aqueles internos, nos subterrâneos de cada ser humano, já indicavam que a civilização evolui sob os escombros de questões profundas, primitivas, que podem vir à tona a qualquer momento. Não deu outra e as duas grandes guerras mundiais foram a cruel comprovação de que a ciência e a técnica podem ser utilizadas para o mal, para o horror.
Mas aqui mesmo no Brasil essas advertências foram dadas, e com maestria em uma das obras-primas da literatura nacional, “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Como se sabe, o engenheiro Euclides estava se encarregando da construção de uma ponte em São José do Rio Pardo quando deu os toques finais no livro, escrito com base nas reportagens que fez para a “Província de São Paulo” (hoje, “O Estado de São Paulo”) sobre o movimento liderado por Antônio Conselheiro em Canudos, na Bahia.
Movimento massacrado pelas tropas fieis ao governo republicano, aquele que, sob a doutrina positivista de Augusto Comte, acreditava na vitória da técnica e da ciência sobre todos os desafios humanos. “Os Sertões”, é bom lembrar, foi revisado em Campinas, pelos criadores do Centro de Ciências, Letras e Artes, a instituição fundada em 1901 e para a qual a cidade deveria olhar com muito mais carinho, pelos enormes serviços que prestou e continua prestando. Em seu próprio nome, o CCLA indica o ideal de união da ciência com outras dimensões da cultura, como um efetivo projeto civilizatório.
Em “Os Sertões”, Euclides da Cunha lembrou que há um Brasil profundo, escondido, que geralmente não faz parte dos noticiários e que está a milhares de anos-luz dos centros urbanos modernos, “civilizados”. Parece que o grito de Euclides, e de tantos outros na mesma linha, não foi mesmo ouvido, porque até hoje o Brasil sofre com esse divórcio brutal entre os países que aqui convivem.
Estas lições não podem ser esquecidas nesse momento crítico da vida brasileira, e obviamente da vida campineira. Sim, é preciso acreditar nos avanços e é fundamental preparar as cidades para um novo estilo de desenvolvimento. Mas não se pode blindar as consciências dos problemas ainda graves, de várias ordens, que precisam ser solucionados.
No fundo, a questão está em que os direitos de cidadania precisam ser de fato respeitados, para todos. Junho de 2013 foi marcado por um movimento na órbita de aumento de tarifas de ônibus que transbordou para uma mobilização gigantesca. Na sociedade globalizada, de comunicação rápida, um pequeno foco de conflito pode ser logo transformado em algo muito maior.
Enfim, gestores públicos e sociedade em geral devem hoje, como nunca, estar muito atentos aos grandes desafios contemporâneos, muitos deles ainda refletindo questões bem antigas. A volta do fantasma da febre amarela é o signo de que a saúde pública brasileira, por exemplo, ainda está longe de resolver questões que se acreditava erradicadas.
Campinas tem, sim, o potencial de fazer coisas grandes e importantes, no rumo de uma cidade mais digna e de maior qualidade de vida. Mas deve estar sempre ciente de que há aspectos essenciais à vida coletiva que não podem ser marginalizados, sob pena de, não equacionados, acabarem encobrindo a luminosidade dos grandes fatos, das obras monumentais. Toda vez que ela escolheu os avanços civilizatórios, os grandes interesses públicos, ditos republicanos, ela brilhou.