Já vimos muitos absurdos ocorridos durante as primeiras semanas do governo interino, mas um dos maiores deles, com escassa – por obviedade – repercussão na mídia é a notícia de reformatação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e provável extinção da TV Brasil. É óbvia a reduzida repercussão na grande mídia porque não interessa aos grandes grupos de comunicação a consolidação de um sistema público de informação e difusão no país.
De fato, não é nova a resistência de parcela poderosa da sociedade brasileira à construção e ao fortalecimento de um sistema público de comunicação no país, e particularmente nos campos da radiodifusão e televisão. A gênese dessa resistência está na própria concepção sobre o Estado brasileiro, desde a sua origem fortemente influenciado por interesses privados e/ou corporativistas.
Em sua essência, o Estado é o interesse público acima de tudo. É o bem comum como prioridade das políticas públicas. Esta é a democracia em seu sentido amplo, aquela do governo do povo, pelo povo e para o povo, o que, no Brasil, nunca foi aplicado efetivamente até o momento, apesar de inegáveis avanços já alcançados, particularmente depois da Constituição de 1988. Movimentos como o de junho de 2013 apenas reforçam a aspiração nacional por mais democracia, e não menos.
Este é um ponto crítico a ser observado. A ideia de diluição da EBC e de extinção da TV Brasil inscreve-se no conjunto de ataques que vêm sendo feitos, cada vez com maior virulência, contra a Constituição de 1988. O conceito de cidadania integral, que é o previsto por exemplo no respeito aos direitos de crianças e adolescentes, nos termos do artigo 227 do texto constitucional, até hoje ainda não foi engolido pelos segmentos que continuam se considerando donos exclusivos do Brasil. A visão de um pais democrático mesmo, com Estado laico, marcado pela liberdade de informação e expressão, não cabe no olhar estreito, retrógrado, de certos grupos sociais.
As tentativas de criminalização da homofobia, a proposta de redução da maioridade penal, a ofensiva contra os direitos dos povos indígenas e quilombolas, os ataques ao Plano Nacional de Educação com teses perigosas como as da Educação Sem Partido e da proibição de discussão sobre gênero nas escolas – todos esses gestos, entre outros, têm como núcleo central a recusa em aceitar os avanços previstos na Constituição de 1988.
E agora a hipótese de reformulação da EBC e extinção da TV Brasil. Neste caso, grupos poderosos não aceitaram ainda o que está previsto no artigo 223 da Constituição, segundo o qual “o Poder Executivo, ao outorgar e renovar as concessões, permissões e autorizações para os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens, deverá observar o princípio da complementaridade dos sistemas público, estatal e privado da atividade”. Lembrando que, após a mesma Constituição de 1988, o ato de outorga ou renovação da concessão de uma emissora de televisão ficou vinculado à aprovação pelo Congressso Nacional, uma grande mudança em relação à prática anterior, em que essa decisão estava na esfera pessoal do presidente da República.
Os artigos 220 a 224 da Constituição, em seu conjunto, prevêem uma série de diretrizes republicanas para a área das comunicações de massa no Brasil, tais como: os direitos à informação e comunicação, o fim da censura, a proibição do monopólio ou oligopólio nos meios de comunicação, a radiodifusão respeitando a complementaridade entre esferas estatal, pública e comercial. Normas que, de forma geral, ainda não foram devidamente regulamentadas, pela já citada resistência – e enorme poder – de grupos de mídia e outros.
Neste cenário, representou uma esperança a criação em 2007 da EBC e da TV Brasil. Era o passo em direção à instituição de um sistema público de informação e comunicação, o que já existe há muito tempo em países de capitalismo avançado, como Grã-Bretanha (onde desponta a BBC, ícone da comunicação pública) e outros. Aqui, onde se professa o capitalismo, certos grupos se vêem ameaçados com a possibilidade de uma comunicação pública, e daí os ataques virulentos contra a EBC e em especial à TV Brasil.
Um dos argumentos que justificariam a extinção da TV Brasil seria a sua baixa audiência. Esta não é a função de uma emissora de fato pública, não governamental, mas sim, por exemplo, estimular a produção regional e independente, o que a TV Brasil vem fazendo. Assim como já vem ocorrendo a parceria com TVs universitárias e emissoras educativas estaduais, fortalecendo uma rede brasileira de TVs alternativas à hegemonia das TVs comerciais, que vivem sob os desígnios da propaganda.
O que nos leva ao outro possível motivo usado para justificar a extinção da TV Brasil, que seriam os seus gastos, excessivos na opinião de seus críticos. Mas será que estes gastos são maiores do que a propaganda governamental que alimenta e muitas vezes sustenta veículos comerciais de comunicação?
É provável que tenham ocorrido erros na trajetória da EBC e da TV Brasil, e é saudável a discussão sobre o modelo de financiamento da comunicação pública. Mas nunca será possível olhar esse modelo de financiamento com os mesmos óculos com que se enxerga a comunicação comercial, pois os objetivos da comunicação pública são outros.
A comunicação pública, e dentro dela a TV pública, deve ser acima de tudo democrática, pluralista, fomentadora da diversidade cultural e da tolerância, incentivadora do desenvolvimento científico e tecnológico e de uma educação de qualidade. Com todos os possíveis equívocos, esse caminho vem sendo trilhado pela EBC e TV Brasil. Extinguir o canal de televisão que se pretende público e reduzir o campo de ação da EBC seria, sim, um grande golpe na democracia.
Em nenhum momento, até agora, se cogitou na Grã-Bretanha acabar com a BBC ou nos Estados Unidos e Japão em encerrar as atividades do Public Broadcasting Service (PBS) e da Japan Broadcasting Corporation (NHK), ainda que estes países tenham suas emissoras – muito fortes – comerciais.
Mas a campanha contra a EBC e a TV Brasil faz sentido, como vimos. O avanço do poder das redes sociais, entre outros fatores, tem provocado um certo pânico em modelos convencionais comerciais de comunicação. Além do contexto de ataques à Constituição de 1988, o projeto de atenuar ao máximo o alcance de um possível sistema de comunicação pública também inscreve-se nesse panorama de profundas mudanças introduzido pela Internet, e que têm gerado temor generalizado em certos círculos. É, de novo, o momento das forças democráticas estarem atentas e mobilizadas para impedir mais esse eventual grande retrocesso.