A Câmara de Campinas aprovou em turno único, no último dia 27 de março, a criação de uma Comissão Permanente de Relações Internacionais. É uma boa novidade, considerando a posição da região metropolitana no cenário global e o que isso significa em termos de desafios. Será que é um indicativo de nova postura dos vereadores campineiros, que, com algumas boas exceções, nas últimas legislaturas foram protagonistas de gafes nacionais? Campinas espera muito de sua Câmara, iniciativas à altura da representatividade da cidade, que já foi bem maior, com certeza. Resgatar o brilho local é um desafio de toda a sociedade e o papel do Legislativo é nesse sentido central. Ele já deu muitas provas de que pode agir, sim, em sintonia com as demandas mais importantes da população.
O Poder Legislativo de Campinas completa 220 anos em 2017. Fiz uma síntese dessa rica trajetória no livro “Câmara em Foco: Os 200 anos do Poder Legislativo em Campinas”, de 1998. Lembrei, por exemplo, como a Câmara foi espaço de grandes discussões sobre a República, no atendimento às vítimas da febre amarela no final do século 19 e nos períodos complicados das ditaduras, de Vargas e a civil-militar de 1964-84.
Agora é um excelente momento para os vereadores promoverem uma profunda reflexão sobre o que a Câmara ter significado para a cidade nas últimas décadas. Nesse período a cidade mudou muito, crescendo para “além da Anhanguera” e chegando a mais de 1 milhão de habitantes, o que a credenciou – mas não só por esse motivo – a ser sede de uma dinâmica região metropolitana.
Uma das consequências desse salto demográfico foi a própria dilatação do tamanho da Câmara Municipal, que passou a ter 33 vereadores. Bancadas maiores, maior complexidade na relação entre a sociedade e o Legislativo e entre este e o Executivo. Outra derivação foi a necessidade de que a Câmara tivesse uma nova casa e foi o que aconteceu, com a transferência do espaço limitado no Palácio dos Jequitibás para a nova sede, na avenida da Saudade.
Mas o que a Câmara de uma cidade como Campinas precisa não é apenas um novo endereço ou um novo espaço físico. Em uma sociedade cada vez mais influenciada pelas mídias sociais, por novos parâmetros e por novos desafios socioculturais, o Poder Legislativo municipal deve reinventar o seu papel, reforçando a missão de fiscal do Poder Executivo, mas também sendo mais proativa em relação aos desafios contemporâneos. Daí ser uma boa nova a criação da Comissão de Relações Internacionais, conforme proposta do vereador Marcelo Silva.
E olha que a Câmara de Campinas precisa mesmo mudar a sua imagem, muito desgastada, sobretudo na última legislatura, por ações que soaram muito mal em todo país e até fora dele. Foi o caso por exemplo da moção de repúdio ao Ministério da Educação por ter incluído uma citação da filósofa Simone de Beauvoir (1908-1986) em prova do ENEM, em outubro de 2015.
A prova citava o famoso texto de Beauvoir, extraído de seu famoso livro “O Segundo Sexo”: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico, define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino”. A citação chegou a ser qualificada de “demoníaca” por vereadores. A aprovação dessa moção teve ampla repercussão, nacional e internacional, pelo que representa de retrocesso em relação a um debate cada vez mais intenso e, sobretudo, de desrespeito à obra de uma das mais importantes pensadoras na história ocidental.
A reação dos vereadores de Campinas – a moção foi aprovada por 25 deles, com cinco votos contrários – está obviamente relacionada à discussão sobre a questão de gênero, motivo de outra iniciativa da Câmara Municipal que também teve – má – repercussão nacional. Foi por ocasião das discussões sobre o Plano Municipal de Educação. Contrariando o texto aprovado nas Conferências Municipais de Educação, o Plano foi aprovado pela Câmara, em junho de 2015, apenas depois de retirada a palavra “gênero” das estratégias relacionadas a questões de sexualidade e diversidade étnico-racial.
Também houve os casos de datas municipais, propostas por alguns vereadores, que também chamaram a atenção, de forma negativa, pela mídia e sociedade em geral. Enfim, são atos que atestaram contra a imagem do Legislativo de uma cidade considerada progressista, um dos principais polos científicos e tecnológicos da América Latina. Ações recentes de vereadores confirmam o potencial da Câmara em se consolidar como um grande e decisivo fórum de discussões sobre temas cruciais para a cidade e região.
Em 1998 tive a oportunidade de ganhar o Concurso Nacional de Monografias “O papel das Câmaras Municipais nas metrópoles brasileiras do século 21”, promovido pela Câmara Municipal de Salvador, que estava completando 450 anos. No texto, apontei algumas ideias, no sentido de maior aproximação do Legislativo das reais demandas populares, em cidades de porte metropolitano. Na época a internet ainda estava engatinhando mas já destaquei a necessidade de os vereadores contribuírem para uma democracia mais participativa, e não meramente representativa.
Duas décadas depois creio que estas ideias continuam atuais. No atual momento, de descrédito generalizado com a classe política, é mais do que nunca vital para a Câmara Municipal de Campinas a necessidade de repensar suas atitudes e buscar roteiros que coloquem o Legislativo no centro de uma grande e necessária mudança.
As chances históricas estão aí. Uma delas é a do debate em torno do Plano Diretor Estratégico. A Câmara pode apenas refletir conceitos no mínimo muito questionáveis, como a redução da área rural, ou ser mais ousada e de fato aprovar, ouvida a sociedade, um Plano que efetivamente leve Campinas à trilha do desenvolvimento mais humano, inclusivo e respeitador da vida em sua plenitude. Um PDE à altura de Campinas, assim como se espera que o Poder Legislativo esteja na altura dela. Outra grande oportunidade: que a Câmara vote e aprove uma lei municipal de incentivo à cultura que efetivamente seja de interesse da classe artística, dos produtores e inovadores e sociedade em geral.