Crédito: iStock
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E a coisa era outra coisa…

carlaozinho_0256_1200x600Desempregado há um ano e meio, claro que não vi problema algum em me candidatar ao trampinho oferecido pela internet: “Precisa-se de cobaias para experimento inovador do Laboratório Avançado de Estudos Neuronais. Procedimento não prejudicial a saúde. Remunera-se bem. Candidatos devem ser maiores de idade, passarem em testes de acuidade cognitiva, se absterem de álcool, tabaco, drogas ilícitas e medicamentos psicoativos por no mínimo 48 horas, e terem, no mínimo, formação escolar média”. Ora, que preju adviria de deixar que uns doidos de jaleco me metessem uns sensores na cachola?

O problema: não imaginei que a merda me transformaria, contra minha vontade, num viajante extradimensional, mais perdido que cachorro em dia de mudança.

* * *

Tá, cheguei no lugar indicado, entrei numa fila com alguns outros candidatos pingados, me inscrevi. Quando chegou minha vez, o que não demorou nadica, me submeti a exame toxicológico e a uns psicotestes bobos, assinei um termo de concordância (onde estava estabelecida remuneração, que não era lá aquelas coisas, mas daria pra garantir a ração do cachorro no mês) e logo um atendente de cara apática me disse que fui selecionado. Agendou a sessão para duas horas mais tarde. Fui.

Um tiozinho de óculos profundos e embaçados — e de jaleco, claro — tentou me esclarecer, com uma voz trôpega:

— Amigo, primeiro você deve saber que, uns anos antes, cientistas suíços conseguiram obter uma das mais complexas visões do neocórtex cerebral. Eles utilizaram a técnica matemática da topologia algébrica para conseguir mapear as dimensões do órgão e descobriu que ele é composto por estruturas geométricas que estendem-se em até 11 dimensões diferentes.

— Neo o quê?

— Neocórtex. A parte mais desenvolvida do cérebro, responsável por nossa razão e discernimento.

— Ah…

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— Pois bem: segundo os matemáticos, o método consegue discernir os detalhes do sistema neurológico cerebral ao mesmo tempo em que é capaz de capturá-lo em sua totalidade. Eles encontraram um grande número e variedade de conexões diretas entre neurônios e cavidades entre eles, algo que nunca fora visto antes em redes neurológicas, tanto biológicas quanto artificiais.

— Mesmo? — confesso que eu tava boiando.

— Mesmo. Foi tudo muito bem documentado num artigo publicado no periódico Frontiers of Computational Neuroscience, uns anos atrás.

— Acho que não recebi essa edição… — ironizei, mas o tiozinho não deu pinta de ter percebido. Só continuou com a cantinela:

— Que pena! Acredita-se que no interior do cérebro exista uma média de 86 bilhões de neurônios, todos com múltiplas ligações entre si. Foi observando a complexidade dessas ligações que os pesquisadores notaram a variedade de dimensões e formas geométricas formadas por eles.

— As tais dimensões? — ao menos, soube dar prosseguimento ao papo cabeçudo.

— Sim! Conforme os pesquisadores, associações neurais podem formar desde hastes, que são figuras em uma só dimensão, a pranchas de duas dimensões; cubos, com três dimensões; caminhando para figuras cada vez mais complexas em quatro, cinco e até 11 dimensões.

— Legal… — voltei ao meu estado de pura ignorância.

— O fato de você estar aqui se deve à nossa conquista, no sentido de compreender a correlação entre essas conexões e as tarefas cognitivas realizadas pelo cérebro, além do processo por trás da formação dessas formas tão complexas.

— Certo… — murmurei, sem a menor convicção.

— Então, passemos ao experimento. Vamos conectar seu cérebro a um computador equipado com o software que desenvolvemos.

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* * *

Lógico que me meteram eletrodos na cabeça; eu já previa. O mestre dos eletrodos anunciou:

— Até então, os estudos se limitavam a mapeamento neurocórtex de cérebros humanos e a simulações computacionais. Mas separadamente. Nosso software deve permitir que estabeleçamos uma interface, pela primeira vez.

Enquanto ligava a parafernália ao derredor, ele tratou de me tranquilizar:

— Fica frio, você não vai sentir dor alguma; só um leve torpor e, talvez, pela manipulação direta das ondas Alfa da tua mente, uma certa sonolência e até caia num soninho…

— Então, boa noite, Cinderela. — tentei ser engraçadinho.

* * *

Zuniu tudo. O cara disse que eu sentiria um soninho? Pois mergulhei num bem profundo. Não sei precisar o quanto durou, porém, quando me considerei acordado e abri os olhos, não compreendi a paisagem onde me encontrava. Parecia que eu tava todo virado do avesso, fitando diretamente a superfície viscosa do meu… esôfago!

Logo, o cenário mudou: agora, eu era nada mais do que um esboço de um pequeno corpo em linhas simples, perdidaço em meio a um turbilhão de imagens coloridas, todas bem mais sólidas do que “eu”, se misturando no espaço, numa suruba surreal.

A terceira percepção foi até mais perturbadora: “eu” pairava sobre um plano no qual encima, embaixo e dos lados não faziam o menor sentido, cambiando-se com num filmeco mal editado.

As outras oito sensações seguintes só foderam ainda mais minha pobre cabecinha conectada àquele maquinário dos infernos. Demorou até que eu percebesse as tentativas dos tios de jaleco em se comunicar comigo (bem, minhas percepções tavam tão zoadas que, mesmo sabendo, lá de minha instrução escolar básica, que o tempo seria nada mais do que a quarta dimensão da realidade clássica, naquele momento seria difícil demais me decidir obre a real duração temporal de algo).

Só sei que finalmente ouvi a voz de um dos jalocozos, emanada de algum lugar espectral:

— Amigo, embora você não possa perceber, esta comunicação está chegando simultaneamente a todos os pacientes…

— Que bom pra vocês… — resmunguei, com sotaque do Pato Donald engasgado com o rabo de um esquilinho travesso.

— Temos duas boas notícias pra vocês.

Crédito: creativescommons.org
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— Ah, pode ser um embananamento mental meu causado por esta sei-lá=que-porra, mas o jeito certo de começar este papo não seria “notícia boa e notícia ruim”?

— Não, realmente ambas as novidades são ótimas. Primeiro: a interface foi um sucesso: conseguimos mapear as dimensões com sucesso total!

— Que bom pra vocês… e a outra notícia boa?

O intervalo silencioso me sugeriu que a outra “notícia boa” não seria tão boa assim, ao menos pra mim.

— É que esbarramos noutra descoberta, desconcertante. Já ouviu falar na Teoria de Tudo?

— Ah… se me lembro razoavelmente das aulinhas de física teórica das quais não escapei anos atrás, seria aquela hipótese que unificaria, em um só sistema, todos os fenômenos físicos, juntando a mecânica quântica e a relatividade geral do Einstein num único tratamento matemático. O que provaria que Deus joga dados com o universo, sim.

— Certíssimo. E você se lembra quantas dimensões seriam exigíveis pra sustentar a Teoria T?

— Onz… ah! — minha ficha caiu com rumor.

— Pois é. Viu a correlação? Sempre se especulou que, além das três dimensões físicas e da temporal, que são as que percebemos cotidianamente, as demais sete dimensões seriam diminutas demais pra nossa percepção. Acontece que elas estão é diretamente conectadas à consciência humana.

— Legal pra turma toda da ciência, acho até que vocês até deveriam nos pagar um bônus extra por isso… mas será que dá pra vocês adiantarem meu… digamos… despertar? Esta viagem no carrossel maluco já tá ameaçando devolver ao mundo de fora o sanduba de mortadela que ranguei horas atrás…

Saquei logo que agora sim viria a má notícia — ao menos pra mim.

— Infelizmente, por não se tratar de nossa área específica, estamos tendo que estudar alternativas com nossos colegas físicos…

— Ah é? E enquanto isso, o que eu faço? Fico gritando “eureca” enquanto não me divirto dando cambalhotas num pesadelo de Salvador Dali?

— Tenha paciência, … paciente.

 

 

 

Sobre Carlãozinho Lemes

Antes do jornalismo, meu sonho era ser... astronauta. Meu saudoso pai me broxou: “Pra isso, precisa seguir carreira militar”. Porém, nunca deixei de ir transmutando a sucata anárquica dos pesadelos em narrativas cambaleantes entre ficção científica, uma fantasia algo melancólica, humor insólito e a memória — essa tumba mal lacrada de maravilhas malditas. Assim, é o astronauta precocemente abortado quem proclama: rumo ao estranho e às entranhas!

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