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Consiga o seu amor

carlaozinho_0256_1200x600Little John contemplava avidamente sua amada, esperando o momento mágico no qual ela se animaria.

Ia dar tudo certo, gritava uma convicção tagarela em seu coração e em sua mente.

Mesmo sem relaxar sua severa vigília, ele ocupava o tempo acompanhando o noticiário da TV. Até que, finalmente, ouviu: “Bar busca pistas sobre ‘funcionária-manequim’ desaparecida na Flórida”.

A notícia seguia: “Um bar da Flórida pediu ajuda ao público para ajudar a recuperar uma ‘funcionária’ desaparecida: a manequim Cheryl. Wyatt Lawless, dono do bar Beer Punx, em Fort Lauderdale, disse que as câmeras de segurança mostram um homem rondando o bar e depois saindo com a boneca Cheryl. Segundo ele, o furto parece ter sido planejado. Lawless disse que Cheryl não era a ‘mascote’ do bar, mas uma ‘funcionária’ que estava parada na frente do bar havia oito anos. Ele prometeu recompensa a quem der informações sobre o paradeiro de Cheryl.”

Cheryl… então este é o nome da sua amada.

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Little Johnny sempre fora um sujeitinho azarado nas coisas do amor. Não conseguira segurar nem a mais baranga das namoradas que, a muito custo, meio que encabelara em sua juventude.

E aí, o que fazem desesperados do tipo? Recorrem à internet, é claro.

Porém, cada pouco encontro que marcara on-line fora um tiro n’água.

Entretanto, a internet não se mostrara de toda inútil. Chamou-lhe a atenção o anúncio: “Consiga o seu amor. Método baseado em programação neolinguística, totalmente seguro”. Seguia o endereço.

Era uma fila considerável, no corredor encardido do prédio decadente do centro velho.

Quando, finalmente, conseguiu adentar a saleta acanhada, ouviu da recepcionista com cara sonolenta:

— Oi, senhor. Por favor, preencha este formulário e o chamaremos em seguida.

O “em seguida” levou bem uma hora e meia. Tudo bem, até se divertiu preenchendo o tal formulário. Além de discriminar quais doenças teria ou não, teve que responder se tomava remédios controlados — não, pelo menos por enquanto — até ter que assinalar “sim” no campo que ia direto ao ponto: “Você quer conquistar o seu amor?” ”Sim”. Lógico, senão não estaria perdendo tempo naquele muquifo odiável.

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Johnny não pode deixar de reparar nas caras estranhas que o pessoal já atendido — a maioria homens, pouco afeiçoados, como ele próprio — apresentava ao sair da ala de procedimentos: olhos vidrados, alguns até babando. Decidiu deixar pra lá: “Vai ver são leves efeitos colaterais da tal programação neolinguística…”

Até que, finalmente, foi introduzido na tal ala de procedimento. Viu-se deitado numa cama cirúrgica. Um cara, de jaleco encardido, do lado. E, por falar em programação neolinguística, o “doutor” até murmurou umas abobrinhas pseudo qualquer coisa. Mas o cenário piorou muito quando o do jaleco se armou com uma gorda seringa, repleta com uma gororoba viscosa e esverdeada.

— Não se preocupe, é só um relaxante muscular, pra te ajudar a assimilar melhor a programação. — o jalecozo tentou acalmar Little John, quando percebeu o seu tremendo cagaço. E, sem mais delongas, espetou-lhe uma veia do braço.

Depois disso, só o que Little John lembrava era de perambular pela cidade, em busca da amada. Deparou com ela, ainda em estado de animação suspensa, à porta de um boteco chamado Beer Punx. Rondou o lugar por algum tempo e perpetrou o rapto da sua Perséfone.

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O noticiário na TV investia em outro assunto. Mesmo sem já prestar muita atenção, Little John não pode deixar de entreouvir: “As autoridades policiais e o Serviço de Vigilância em Saúde Mental estão às voltas com um mistério. Mais e mais cidadãos têm sido flagrados em atos inusitados; um rapaz foi detid0 quando praticava um ato libidinoso no pôster de uma top model colado numa das laterais de uma banca de revistas.

“Em outro episódio insólito, um jovem escalou o monumento da “Bombeira Heróica”, erigido em homenagem à profissional que salvou dezenas de crianças num incêndio numa escola, mas acabou sacrificando a própria vida depois que foi atingida por uma viga que desabou. Quando foi detido, o escalador do monumento, que é dos mais altos, estava tentando colocar um anel de noivado no dedo da estátua.

“Diversos casos similares continuam ocorrendo pela cidade. Sem elementos para acusações convencionais e ante as evidências de que os infratores estão vitimados por algum tipo de transtorno mental, a polícia acaba liberando os detidos, e ainda não conseguiu chegar às motivações para essa estranha epidemia.

“A única esperança de uma pista, até agora, surgiu de um cuidado que as autoridades policiais e de saúde tomam, antes de devolver os infratores às ruas: coletam amostras de sangue de todos. Peritos já identificaram um pool de substâncias que, combinadas, podem induzir tal status de delírio. Agora, já começaram a rastrear quem teve acesso aos produtos”.

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Apesar de não tendo prestando muita atenção à essa parte do noticiário, Little John não deixou de se questionar: o quanto essa coisa toda teria a ver com o seu caso e se a busca arriscaria seu idílio com a amada?

Entretanto, se tranquilizou: logo, sua amada sairia do transe de polietileno frio e eles poderiam fugir do radar dos repressores de sonhos.

 

 

 

 

 

Sobre Carlãozinho Lemes

Antes do jornalismo, meu sonho era ser... astronauta. Meu saudoso pai me broxou: “Pra isso, precisa seguir carreira militar”. Porém, nunca deixei de ir transmutando a sucata anárquica dos pesadelos em narrativas cambaleantes entre ficção científica, uma fantasia algo melancólica, humor insólito e a memória — essa tumba mal lacrada de maravilhas malditas. Assim, é o astronauta precocemente abortado quem proclama: rumo ao estranho e às entranhas!

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