Parada Poética, na estação ferroviária de Nova Odessa (Foto Josiane Giacomini)
Parada Poética, na estação ferroviária de Nova Odessa (Foto Josiane Giacomini)

Caleidoscópio de palavras, na Parada Poética em Nova Odessa

josianegiacomini_400x400A praça desenha em torno de si um cenário. Têm o zum-zum-zum dos carros, a algazarra dos pombos e das maritacas, o som ininterrupto de um moinho de farinha e o trem, um personagem-fantasma a atravessar a estação ferroviária de Nova Odessa, no interior de São Paulo, sem nunca mais parar. Diante de tantos apelos sonoros, a prosa ritmada é com Renan Lelis Gomes, 32 anos, e seu caleidoscópio de palavras. Mas se eu disser Inquérito, pronto, está estabelecida a ponte para o Rap, o verso cru e cortante, a Parada Poética e tudo o que a poesia possa abrigar.

Inquérito (também o nome do grupo de Rap que fundou em 1999), antes de ser o poeta, o produtor cultural, o geógrafo e o professor, considera-se um rapper. E para ser o que sempre quis vendeu sua força de trabalho, inicialmente como mecânico, para poder dar vazão ao músico e ao compositor.

“Hoje eu tenho atividades na academia, ligadas à geografia, na poesia, por conta de meus dois livros e da Parada Poética, e na música por conta do Inquérito. Mas como eu sou professor, além das atividades artísticas, eu também trabalho com atividades educacionais, misturando arte e educação. Sou muito chamado para fazer oficina de literatura e de rap”, lista. Também faz doutorado na Unesp. Sua tese tem como mote estabelecer uma ponte entre a literatura marginal e o hip-hop.

Renan Lelis Gomes: poeta, produtor cultural, geógrafo, professor e o rapper Inquérito (Foto Josiane Giacomini)
Renan Lelis Gomes: poeta, produtor cultural, geógrafo, professor e o rapper Inquérito (Foto Josiane Giacomini)

Música como verso

Sem uma lente específica, macro, acoplada a uma máquina fotográfica, quanto mais perto se chega de uma imagem, menos nítida ela fica. A proximidade, literalmente, desfoca o objeto. De 1997 até 2010, Renan Inquérito vivia em função de compor e cantar Rap. Só não conseguia ver a poesia nas coisas que escrevia…

“Sempre achei que poesia era algo muito distante. Nunca encontrei um poeta na fila do mercado, na calçada de casa. Não tinha nenhum poeta na família nem no bairro. Poeta era quase um mito”.

Um convite, em 2010, mudaria essa percepção. Chamado para fazer uma oficina de Rap com os garotos da Fundação Casa, descobriu em cima da hora que ela teria que ser de poesia. No início, trabalhou com as letras de música que conhecia. Depois, para ter o que falar a si mesmo e aos meninos, correu atrás de repertório. Descobriu Mário Quintana, Sérgio Vaz, Manoel de Barros, Augusto de Campos, Paulo Leminski, além de Ferréz, Marcelino Freire e Daniel Michoni.

“Os menores infratores, que seriam atendidos pelo meu trabalho, acabaram contribuindo com a minha formação. Sem saber, eles me ensinaram que Rap era poesia”.

Descobriu também que há coisas que cabem num cantar e outras numa leitura (e, às vezes, nas duas ao mesmo tempo). Hoje, quando compõe, já identifica quais versos dão para o quê. Mas no começo “o rótulo da poesia era tão forte que eu achava inacessível, não conseguia me encaixar”. Detalhe: mesmo depois de já ter três CDs gravados e mais de 50 canções na bagagem.

Dessa experiência educacional na Fundação Casa veio Poucas Palavras, seu primeiro livro, de 2011. Para lançá-lo e fazê-lo chegar às mãos das pessoas, havia um entrave: qual lugar abriria esse espaço para a sua poesia? Não deu outra, teve que construir  a própria estrada. Em parceria com o amigo e fotógrafo Márcio Salata, nascia a Parada Poética.

Renan Inquérito: aprendizado com jovens da Fundação Casa (Foto Josiane Giacomini)
Renan Inquérito: aprendizado com jovens da Fundação Casa (Foto Josiane Giacomini)

Ofício de escrever

Quem pode parar um olhar aceso? Ninguém. Essa janela só fecha quando adormece e, ainda assim, têm os sonhos. A antena parabólica capta tudo o que vê. Algumas coisas, descarta. Outras, registra. Renan Inquérito diz que qualquer coisa pode ser o start para criar uma poesia. “Pode ser uma outra musica que eu ouvi, um filme que eu assisti, uma conversa… Saca? A matéria-prima pode vir de tudo isso, de uma situação cotidiana, de um anúncio de jornal, de uma manchete, de uma outra poesia, e aquilo me desperta algo”.

Em seu mais recente livro, que acaba de sair do prelo, Poesia para encher a laje (leia abaixo) tem o verso de Sarau no Saara. “Quando eu fiz essa poesia eu percebi que a maioria dos países africanos tinham nomes femininos. Então eu comecei a atribuir características de uma mulher aos países… Sei lá, tipo Serra Leoa, Quênia, Namíbia, Líbia, Gana. E aí saiu essa viagem da minha cabeça. Talvez outras pessoas não tivessem enxergado isso”, aponta.

Mas com a inspiração é diferente. “Ela não é algo mecânico… É como um terremoto sabe? Não dá para você prever um terremoto. A inspiração é como um fenômeno da natureza”. No caso de Renan Inquérito, ela pode vir da coisa mais banal ou complexa. “Escrevi muitas músicas e poesias em aulas sonolentas, extremamente chatas, que eu não podia sair da sala porque precisava muito da presença. Aí eu ia para a última folha do caderno e começava a escrever”.

Mas há duas situações recorrentes que são terreno fértil para a poesia de Renan. O chuveiro e o carro. “São lugares propícios para eu me inspirar”. E explica. No primeiro, “porque quando você está tomando banho, você está cantando e acaba arriscando algumas melodias”. No segundo, pela quantidade de apelo visual. “Às vezes em uma hora você atravessa quatro cidades. Então imagina a quantidade de coisas que você consegue ver… uma infinidade de coisas… E aquilo vai adentrando sua mente e se choca com outras coisas pré-estabelecidas, vai filtrando e vão saindo as coisas…”.

Atualmente, reconhece, a tarefa ficou ainda mais fácil com os celulares. Basta gravar o áudio. “É muito prático”. Antes, sempre que tinha uma ideia, parava e anotava as coisas. Mas nem sempre isso era possível. “Por deixar para depois eu já perdi várias ideias”.

Nas estação ferroviária de Nova Odessa, a parada para a poesia (Foto Josiane Giacomini)
Nas estação ferroviária de Nova Odessa, a parada para a poesia (Foto Josiane Giacomini)

A parada

Megafone em punho, Renan Inquérito instiga a plateia: “A Parada… não para!”. A cada Parada dita, o público faz sua parte e responde: “não para!”.  A repetição, bem marcada, lembra o som do trem nos dormentes.  E, neste caso, não é figura de linguagem. Tem vez que o trem passa uma, duas, cinco vezes durante o sarau. Tem vez que passa nenhuma. É sina de estação.

Antes, lembra Inquérito, quem estava com o microfone em punho, parava a declamação até o trem passar. Hoje, no afã de dizer o verso até o fim, o DJ Vini sobe o som do microfone e o trenzinho caipira moderno vira marcação para a poesia que salta ligeira da garganta. A Parada Poética fervilha.

O nome Parada foi um jeito de dizer sarau de forma diferente. “Quando a gente começou a chamar as pessoas para um sarau, ninguém sabia o que era”. As pessoas falavam “sarau”?, com ar de interrogação mesmo. “Aí eu explicava o que era um sarau e de tanto ter que ficar explicando – ‘meu, é um negócio lá de poesia, é uma parada que a gente vai, faz poesia, é uma Parada Poética’”. Mas o nome também é uma referência a uma cena que sua amiga e poeta, Marina Mara, de Brasília, fez num ponto de ônibus (lá chamado de parada), onde foi queimado o índio Galdino. “Eles ocuparam essa parada com poesia, com texto, com foto; fizeram uma intervenção”. Quando veio essa história de Parada Poética, Renan Inquérito foi falar com Marina Mara para usar o nome. “Ela foi super solícita com a gente e disse ‘pode usar Renan, fique à vontade’”. Depois disso ela já veio duas vezes na Parada Poética .

Antes de ocupar a estação, a Parada Poética acontecia num bar de Nova Odessa, o Meu Bar. “Eu falava que era no Meu Bar e todo mundo achava que eu era o dono”, brinca Inquérito. A Parada ficou neste endereço por quase dois anos, até que o espaço fechou. Foi aí que surgiu a ideia de ocupar a estação, que estava abandonada.

No início, uma das características da Parada era ser um sarau itinerante, feito a cada mês em uma cidade diferente: Nova Odessa (Meu Bar), Americana (Bar do Zara) e em Campinas (Casa São Jorge). “Nós fizemos isso por quase 2 anos, até que a gente decidiu fazer o sarau só em Nova Odessa”. Essa mudança ocorreu no começo de 2015.

Hoje a Parada Poética, que acontece toda segunda segunda-feira de cada mês, tem desdobramentos em outros lugares. “Mesmo não sendo aqui, no nosso QG”, diz Inquérito. Somando as mensais, as que ocorrem em escolas e em outras frentes, como lançamentos de livros e participações esporádicas, o número de edições impressiona. “Acho que a gente já fez mais de 300”.

A razão de ser numa segunda-feira foi porque neste dia o bar não abria e era melhor para o dono. Surgiu até uma piada. “Um sarau numa segunda-feira, quem vai ir? Só os cabeleireiros”. Mas deu super certo. “A gente fala que é “poesia de primeira numa noite de segunda”. E vem gente de toda a Região Metropolitana de Campinas. “Tem gente de Indaiatuba, Monte Mor, Santa Bárbara D`Oeste, Americana, Campinas, Valinhos, Vinhedo, Jundiaí, Sumaré, Hortolândia, Nova Odessa, Piracicaba. É muita gente!”. Segundo Inquérito, é um público que já frequentava a Parada itinerante.

“Dá de tudo, né? Vem gente que gosta de poesia, vem gente que faz poesia, vem gente que declama poesia, vem gente que nem conhece poesia, vem curioso, vem tudo! Vem poeta profissional, vem poeta principiante, vem todo tipo de profissional, né? Não vêm só artista, professor ou só gente ligada às artes. Vem muita gente que faz outras coisas também, que é pedreiro, que é pintor, que é mecânico, balconista, vendedor, pacoteiro, caixa, mas que encontra na poesia uma válvula de escape”.

Renan Inquérito diz que o formato inicial da Parada Poética, em bar, foi inspirado em outros saraus, como o da Coperifa e o Sarau do Binho (“o mais antigo de São Paulo”, afirma). “A primeira vez que eu fui num sarau foi num bar, na Coperifa, na zona sul”. E de tanto ir e falar a respeito para quem não podia chegar logo ali em Sampa, deu o clique: “Precisamos fazer um aqui, para que mais pessoas vejam”. Era a outra razão.

Aos poucos, o grupo, que era dois, formado por Renan Inquérito e Márcio Salata, foi virando um coletivo. “Aí as outras pessoas vieram somando. O Pepê veio fazer as artes, o Vini veio para ser DJ, a Elaine para fazer o rango, o Zara para cuidar do bar, as meninas para ajudar a montar a estrutura. Quando viu, a gente tinha uma equipe”.

E o fato de sair de um bar para um espaço específico, onde a poesia é o centro das atenções, também foi fundamental. Embora tenham comes e bebes a cada edição, “nosso grande motivo de estar ali não é o bar e sim a poesia; o bar é um mero adereço”. E quando não vendem o suficiente para cobrir as despesas (aluguel das mesas, cadeiras, do som etc), pagam do próprio bolso.

Hoje Inquérito tem consciência do trabalho que eles promovem. “Quando você começa a promover a literatura para um público que é não leitor ou para um público que é não escritor, e começa a angariar esses caras, aí que é louco. É uma renovação. Eu acho que o grande barato e a grande missão do negócio é tentar levar isso para outras esferas e para outras pessoas. Acho que é isso que faz toda a diferença, né?”.

No primeiro livro de Renan Inquérito, "Poucas Palavras", um desfile dos contrastes da sociedade brasileira a céu aberto (Foto Josiane Giacomini)
No primeiro livro de Renan Inquérito, “Poucas Palavras”, um desfile dos contrastes da sociedade brasileira a céu aberto (Foto Josiane Giacomini)

Poucas Palavras

Tem verso curto, longo, que berra e emudece. O primeiro livro de Renan Inquérito, Poucas Palavras, é assim, um desfile dos contrastes da sociedade brasileira a céu aberto. Estão nele a violência que trafega sorrateiramente no cotidiano, que de tão habitual ninguém parece ver (até deixar de ser com o vizinho). Por isso o verso: para lembrar, cutucar, instigar e refletir.

Pedagogia

A mãe trabalha, a rua educa

A escola falha, o crime recruta

E tenho dito

Nem toda poesia é bonita, nem toda música é pra dançar

Nem toda história foi escrita

Poesia para encher a laje

A poesia pode usar vestido longo, terno, bermuda, o que for, mas é sob roupa alguma que ela mora. E neste corpo cada um desfila o que lhe cabe. Pode ser a palavra em lugar do soco, o amor em confidência, um silêncio de letras desconexas; enfim, o humano, suas contradições e acertos… Em Poesia para encher a laje, Renan Inquérito apura o verbo e também brinca com a sonoridade das palavras… E no abre vem…

Sou caneta sem tinta

que insiste escrever

fere o papel

e deixa uma

mensagem

não existe vida

sem carga

SAUDADE

palavra singular

que doi no plural

O trem passa e a poesia permanece fora dos trilhos (Foto Josiane Giacomini)
O trem passa e a poesia permanece fora dos trilhos (Foto Josiane Giacomini)

 

 

 

 

 

 

Sobre Josiane Giacomini

Josiane Giacomini é jornalista, mas também fotógrafa e poeta quando o olhar atenta. Isso pode acontecer quando uma pedra se diferencia das demais ou uma injustiça pisca vagalumes em noite escura. Mas é a vida, humana ou não, que dá a medida desse lastro.

3 comentários

  1. Abusador de merda o Renan Inquérito. Homofóbico, hipócrita.

  2. Fabiana Pacola

    Sensacional, Jô ! Que coisa boa saber dessa parada e que projeto mais lindo! Um beijo !